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Um enorme rabo de baleia

Academia

Um enorme rabo de baleia

joana meirim

 

um enorme rabo de baleia

cruzaria a sala nesse momento

sem barulho algum o bicho

afundaria nas tábuas corridas

e sumiria sem que percebêssemos

no sofá a falta de assunto

o que eu queria mas não te conto

era abraçar a baleia mergulhar com ela

sinto um tédio pavoroso desses dias

de água parada acumulando mosquito

apesar da agitação dos dias

da exaustão dos dias

o corpo que chega exausto em casa

com a mão esticada em busca

de um copo d’água

a urgência de seguir para uma terça

ou quarta boia, e a vontade

é de abraçar um enorme

rabo de baleia seguir com ela

 

Alice Sant’Anna, “Um enorme rabo de baleia”, Aula de Natação. Lisboa: INCM, 2018. Aqui publicado com autorização da autora.

 

Gosto especialmente deste poema porque põe em cena um momento do quotidiano, mais precisamente, o momento do regresso depois de um dia cansativo a uma casa onde o silêncio e a distância emocional impedem o diálogo. O clima é tenso e inerte, regido pelo tédio da circularidade dos dias.

Um casal sentado no sofá convive com “a falta de assunto”, e a imagem de “um enorme rabo de baleia” atravessando a sala passa pela mente da poetisa. O animal mergulharia nas “tábuas corridas” e desapareceria como no mar, mas ela sabe que, mesmo ocorrendo esse fenómeno espantoso, nada na rotina se alterará; tudo permanecerá soturno, sob a égide do “tédio pavoroso”, do paradoxo da “água parada acumulando mosquito/apesar da agitação dos dias”. O desejo urgente de mudança, de “abraçar um enorme/ rabo de baleia e seguir com ela”, continuará a arder-lhe no peito secretamente. Por isso, ela não partilha a sua vontade com o companheiro no sofá; deixa que o silêncio assente, que a exaustão diária estorve a conversa e perpetue o ciclo fastidioso.

Este cenário é comum nos dias de hoje. Governados pela inexorável rotina, pelos hábitos imutáveis, pelo cansaço, pelo tédio, pelo desassossego da alma face a uma realidade que asfixia a hipótese de mudança, os seres humanos não vagueiam já, mas arrastam-se para casa depois de longos dias monótonos que devoram o tempo (ou o tempo que devora os dias). Nesse sentido, o poema de Alice Sant’Anna lembra a canção de Sérgio Godinho, “Lisboa que amanhece”, que retrata o trajecto dos corpos que cansados vão para casa e mergulham no “sono fundo/fecundo”, a única vantagem após “o vão trabalho”, pois “em sonhos, é sabido, não se morre”. De facto, “o corpo que chega exausto em casa” à procura de um copo de água, isto é, de razão para viver, ansiando por uma “terça/ou quarta boia” para flutuar no mar parado das semanas, sonha nadar com esse enorme rabo de baleia e finalmente libertar-se da prisão quotidiana.

É uma imagem surrealista e algo absurda, a de uma baleia a cruzar a sala de um apartamento moderno, mas são justamente as ideias mais absurdas que são capazes de trazer a novidade. É o louco, o excêntrico, o anunciador do impensável que, como diz Monique Plaza, “põe a descoberto aquilo que o ser normal deixa na sombra”, e é o que esse ser normal não admite e escolhe ocultar que pode instigar a mudança. Assim, à semelhança do louco, a poetisa deseja quebrar o muro rijo da normalidade, o ciclo de silêncios e palavras não ditas, e nadar num mar em movimento, abraçada àquele “enorme rabo de baleia”.

 

Patrícia Passos de Sá


Patrícia Passos de Sá estuda Línguas, Literaturas e Culturas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo especial interesse por literatura portuguesa, inglesa e francesa. Nos tempos livres, dedica-se à escrita, à leitura e à música.