Entrevista a Paulo da Costa Domingos
Maria S. Mendes
Entrevista a Paulo da Costa Domingos
Lisboa, 15 de Janeiro de 2018
Encontrámo-nos com Paulo da Costa Domingos na Galeria Monumental. O autor, editor e alfarrabista trazia uma primeira edição de Herberto Helder acabadinha de comprar e que deu o mote a algumas das perguntas sobre encontros fortuitos com outros livros cheios de migalhas de bolachas, inéditos de Gomes Leal e desenhos do rei D. Fernando. Durante a hora e meia que se seguiu conversámos sobre poemas e erros de crítica literária, sobre o trabalho de paciência do leitor, "quase tão persistente como o do escritor”, sobre poetas subvalorizados e sobre autores, como Cesário, que não são realistas.
A acompanhar a entrevista damos notícia de três livros, edição viúva frenesi. Leia aqui.
Jogos Florais: Gosta de poesia?
Paulo da Costa Domingos: A poesia está na raiz da linguagem. Antes da escrita, para memorizar as palavras haveria truques, esses truques eram mnemónicas, ou fonética sequenciada segundo um método repetível. O som fica gravado algures no cérebro e conseguimos relembrar esse som. A linguagem começa aí, é o princípio da comunicação entre os humanos. É o poema na sua forma rudimentar, de utilização quotidiana, grupos de palavras à procura de uma regularidade frásica, antes de se autonomizar e ser tido como entidade artística. Isso interessou-me sempre muito: o que acontece quando falamos com o outro. E quando falamos carregados de significação, por assim dizer, poética. Comunicar com o outro é tentar influir no destino dele. A forma que encontrei foi na arte, no poema.
JF: E é uma comunicação bem sucedida? Ou condenada ao insucesso?
Não sei se é bem-sucedida, podemos não ter feedback imediato ou o esperado. Quando escreves o poema, não sabes aonde é que ele te leva. O poema pode dar origem a modos de vida, comigo deu. Por exemplo, retirou-me do mundo do trabalho, do trabalho assalariado para um patrão. Nunca trabalhei para um patrão, tive clientes mas não patrões. A força que pus na realização da minha arte ocupou-me sempre bastante e causar-me-ia grande fricção ter de acatar ordens de quem quer que fosse. A arte não recebe ordens de ninguém. Dei por isso muito novo, aos 17 anos, 18 anos. Não estou a dizer que aos 17 anos era escritor. Estou a dizer que havia uma necessidade de expressão utilizando a linguagem intencionalmente, mesmo antes de escrever poemas ou de eu reconhecer que os poemas por mim escritos tinham algum mérito.
JF: Tem uma rotina diária?
A escrita nunca foi para mim um funcionalismo, nunca foi algo que se fizesse a horas certas, por razões práticas. Nunca foi isso: é um acontecimento que pode surgir pela manhã, à tarde, à noite. O poeta é-o 24 sobre 24 horas.
Não há portanto uma rotina diária, mas fico grato quando a escrita aparece. Nunca segui qualquer rotina e tive longos períodos, por vezes de anos, em que não escrevi uma linha para além de recados a algum vizinho, ou qualquer outra coisa tão banal como isso. Mas estou extremamente feliz porque a partir de determinada época, talvez desde há sete anos, aconteceu surgir-me naturalmente uma predisposição do espírito a que, à falta de melhor, poderemos chamar rotina. Começaram a aparecer cadernos escritos com regularidade, e esses cadernos levavam um rumo, arrumavam-se. Os livros que publiquei desde 2010 para cá são livros, na sua génese, muito diferentes de todos os anteriores, que iam acontecendo consoante uma escolha larga sobre materiais acumulados ao longo vastos períodos de vida. Depois de 2010 tudo vem surgindo de uma forma mais sistemática, a partir da escrita de todos os dias, sem quebras de nexo.
JF: Usa a poesia no dia-a- dia?
Se eu uso a poesia no quotidiano? Uso. Uso-a para mim. Essa realização do texto dá origem a um prazer. Tem-se uma pergunta que não se sabe qual é, e atiras-te ao papel. E ficas com mais perguntas do que quando começaste. Esse percurso, e o agradável que ele é para mim, como primeiro leitor, gera prazer. Agrada-me conviver todos os dias com o meu poema... mas também com os poemas dos outros. Isso agrada-me imenso.
(Mas não me perguntem muito sobre o que há agora nas livrarias, senão tenho que dizer mal de pessoas, e eu não quero). [Risos].
JF: Para que serve a poesia? Serve para alguma coisa?
Nos antípodas do funcionalismo, ou da existência assalariada, ou dos mercados, a minha escrita não aspira a qualquer troca material. Mas também estou convencido que a vida verdadeira dos seres humanos não aspira ao lucro, ao deve e haver, às trocas materiais. Eu acho que a arte cometeu um erro no dia em que fez um pacto com o dinheiro. Que é muito antigo, não é de agora. Mas esse pacto da arte com o dinheiro ou com o comércio só pode desvirtuar a nossa presença no planeta. A vida não é uma mercadoria.
JF: Como se ensina alguém a ler um poema?
Esse é um grande problema... é complicado. Um texto, ou uma pintura, ou qualquer outro estímulo artístico, pretende agir como as manchas de Rorschach. Pões à frente e a pessoa começa a debitar a sua própria história, a sua individualidade, começa a projectar-se nesse estímulo, num crescendo, espraiando-se, enriquecendo-se espiritualmente. O poema propõe sempre um alargamento e não uma congestão do significado: quanto mais rico culturalmente e de experiência de vida for o leitor mais facilidade tem em colher na leitura o que foi semeado na escrita. A transmissão de um poema de um autor a um leitor não é uma coisa que se faça toma-lá-dá-cá. É um trabalho de paciência. Ao leitor é-lhe pedido um trabalho de paciência quase tão persistente como o do escritor. Uma das coisas que os pedagogos devem fazer, a primeira, é pôr o poema (como a qualquer obra de arte) no contexto em que foi criado. Toda a obra é sempre fruto de um biografável. Muitas vezes perceber esse biografável ajuda a perceber quais as escolhas estéticas que o poeta fez, e esse é o princípio. É o modo de solicitar a experiência pessoal de cada leitor. Não sendo desta maneira, se o leitor ignorar os lugares e as circunstâncias do poema, então também não capta os sinais daquela linguagem e, portanto, acontece-lhe não perceber nada.
Agora, posso dizer uma coisa: o caminho que o ensino leva actualmente não pode nunca aproximar leitores de poemas, e não só de poemas. Não pode porque hoje a finalidade do ensino é ensinar apenas a ler o manual de instruções da vida quotidiana, ler uma sinalética muito, muito escassa e grosseira.
JF: Um poeta que considere subvalorizado.
Só vos posso falar das minhas preferências pessoais… Acho que não se dá valor suficiente ao António Maria Lisboa e ele até está publicado numa editora de grande expansão. Acho que se dá importância desmedida a outros escritores. Hoje em dia dá-se importância a mais a Ruy Cinatti em detrimento de outros escritores que estão abafados. Acho que o próprio Mário Cesariny está desvalorizado, sei isso por experiência. Como vocês sabem, tenho uma página de venda de livros de alfarrabismo. E o facto é que dificilmente vendo livros do Cesariny, o que não acontece com Ruy Cinatti. E isto eu considero que é a tal inversão de leitura do momento histórico.
Dou outro exemplo: nos anos 80, no binómio João Miguel Fernandes Jorge versus Joaquim Manuel Magalhães, não havia quem não adorasse o João Miguel. Eu disse sempre que, daqueles dois escritores, o importante é o Joaquim Manuel Magalhães e não o outro. Mas, lá está, num determinado tempo as coisas são balançadas de outra maneira. Hoje já é consensual achar-se que o Joaquim é melhor. E isto tem a ver com as leituras que as gerações fazem para resolver os seus problemas, e com os empolamentos que fazem de alguns autores em detrimento de outros. Hoje, se calhar, dá-se imensa importância ao Pessoa em detrimento do Cesário, do Pessanha, do Pascoaes (por exemplo, o Pascoaes do Bailado) e do Antero... São efeitos de época.
JF: E do Régio?
Não gosto do Régio. Representa um claro retrocesso relativamente ao modernismo do grupo do Orpheu. No grupo da presença prefiro sem margem de dúvida o Vitorino Nemésio.
JF: E não há que tirar alguns poetas das gavetas?
Deve haver. Há sempre surpresas. Há por certo poemas na gaveta. É bem capaz de haver autores inteiros no armário. Aqui há uns anos comprei um molho de papéis que estavam destinados ao lixo. Era um autêntico saco de lixo, mas quando olhei de novo, já em casa, e comecei a espalhar aquilo tudo sobre uma mesa, tinha ali fotografias e manuscritos do Gomes Leal. Sendo que havia pelo menos três poemas, que eu saiba, que não estão publicados em parte alguma. Ou seja, podem andar por aí perdidas muitas pontas soltas, pontas soltas de poetas inteiros.
JF: Nessas buscas de livros qual foi a descoberta que o deixou mais contente?
Há livros raros, peças únicas, que fui encontrando e que são meus neste momento. Por exemplo, um livro do Cavaleiro de Oliveira, uma das versões da Viagem à Ilha do Amor, que havia sido referida num ensaio de Vanda Anastácio, mas que se julgava não existir nenhum exemplar, nunca ninguém o tinha visto. Nunca o tinham visto porque tinha sido publicado sem nome de autor. Todavia – e esta é uma daquelas alegrias de alfarrabista atento – um exemplar dessa versão desconhecida encontra-se na minha posse! (Houve, então, o cuidado de comunicar logo à ensaísta.) Tenho também uma das quatro ou cinco únicas colecções que existem das gravuras do rei D. Fernando II [1816-1885]. E com a particularidade de estar em folhas de formato muito grande, numa técnica chamada chine-collé, destacáveis, não aparadas, um conjunto que reúne talvez o maior número conhecido, setenta e tal gravuras. Há uma colecção no Museu da Gulbenkian, mas com menos gravuras, e com o papel aparado. Coisa que me dá enorme satisfação. Porque gosto muito dos desenhos do D. Fernando e sei em que contexto da história do desenho foram criados, a sua proximidade estética a um dos primeiros ilustradores de periódicos, o Nogueira da Silva. O rei D. Fernando foi um artista extremamente sensível.
JF: Como se imagina num verbete de uma enciclopédia literária? O que gostaria que a posteridade lesse sobre si?
Esses verbetes não devem ser apaixonados nem judicativos. Aquilo que deve figurar é o nome, data de nascimento, biobibliografia, etc., qual o contexto literário e histórico em que se inserem autor e obra. É natural que sobre mim refiram influências do surrealismo, mas tirando isso, acho que não se deve dizer mais nada, até porque tentei sempre construir a minha obra fora de qualquer cânone estabelecido. Aquilo que eu gostaria de ler sobre mim é exactamente o que está na minha página da Wikipedia. Faço questão que se saiba e que conste desses dados biográficos que sou um autodidacta.
JF: Lê o que os críticos escrevem? Parece-lhe que estes acertam, ou nem por isso?
Neste momento não há crítica literária, há um serviço de notícias de livros viciado pelas editoras. Nos jornais não há crítica literária e no seio das universidades ela escapa-nos, porque não chega cá fora. Existe crítica até nas aulas, mas depois fica por lá, pelos bastidores universitários.
Nos jornais, quando há crítica literária cometem erros, alguns graves. Por exemplo, a Ana Pereirinha dá notícia, e muito bem, no artigo que li sobre os 3 livrinhos que publiquei agora na viúva frenesi, do ponto de partida daquilo, e que é o livro de 1998 Subsídio Suicídio Ostras Geladas. Ora bem, esse livro foi feito e atirado aos leões do mercado leitor sem nome de autor, porque uma das intenções era verificar qual a recepção crítica do documento. Na altura, os fazedores de opiniões só escreveram disparates. E isso deu sobejamente origem a grandes risadas e filosofia de serão familiar. Muito se bebeu em cima do que foi escrito pelos jornais.
E porquê? O Expresso, que na altura era um jornal com mais espaço dedicado à cultura, agarrou no livro e fez um artigo de meia página, pela mão de Jorge Henrique Bastos. O exercício do disparate foi grande em 98, e hoje nada mudou neste aspecto, a avaliar pelas insuficiências de um mini-artigo que surgiu no mesmo periódico, assinado pelo meu amigo Manuel de Freitas, a propósito da recente publicação dos 3 livros.
Lá está: em 1998, como não existia nada biografável, apenas um “autor” anónimo, ficava-se sozinho com o texto e com o tempo em que o texto surgia. Faltava com que encher o artigo, sem ir pelos caminhos da leitura dos versos. Mas o vício do jornalismo de encher artigo, e a incapacidade de ler, deu origem a teorias culturais erráticas, mais do foro da adivinhação do que do entendimento do texto vindo a lume. Chegou a escrever-se que o livro era do António Franco Alexandre (porque tinha uma escrita irónica e não sei quê mais, e como havia por lá muita ironia e sarcasmos mal digeríveis...).
Passaram 20 anos e resolvemos fazer outra vez o teste. Como é hoje sabido, aquele livro de 98 foi escrito não por 1 mas por 3 escritores. Publicámos agora a revisão da proposta e, dos três autores, o único que se limitou a só rever umas vírgulas fui eu, o meu núcleo é o único que está muito perto do original. O Manuel Fernando Gonçalves manteve em parte o que havia escrito mas actualizando o tempo, sobretudo na relação dele com a ideia de subsídio, antes e agora. O Rui Baião é quem mais se afasta e faz um livro diferente. Mas mesmo para quem desconhece este passado de 20 anos deste livro, para quem receba desprevenidamente os 3 novos conjuntos de versos, é claro que vai encontrar relações intertextuais, e zonas nos 3 livros que, sendo o mesmo texto, sugerem que um Anónimo ainda habita entre nós. A própria solução gráfica, com 3 capas que podem encostar-se umas às outras como um painel de azulejos, propõe desde logo ao leitor um jogo: o jogo da arte, a sua componente lúdica.
Surge, assim, um problema de descodificação e de atracção ao jogo, que só tu, Ana, é que levantaste, indo mesmo mais longe, ao ponto de haveres identificado a origem remota dos 3 novos livros. Como já disse, o Manuel de Freitas escreveu resumindo a problemática dos 3 livros a preocupações residuais identificadas pela escrita dos 3 autores. Apesar de tudo, poderia ter sido pior. Já o Henrique Manuel Bento Fialho escreveu no blogue dele com muito acerto, estabelecendo uma belíssima relação entre os 3 livros... Existem, portanto, pistas deixadas pelos autores que com inteligência, vontade e atenção podem ser decifradas por um leitor comum, quanto mais por quem faz profissão de escrever acerca daquilo que lê!
JF: Temos uma secção sobre curiosidades literárias. Lembra-se de alguma que pudesse partilhar connosco?
Há uma coisa para mim das mais admiráveis. Como lido com muitos livros que são comprados em segunda mão, uma das coisas que me surpreende é abrir um livro e encontrar o que ficou lá deixado esquecido. Até já encontrei dinheiro. Acontece regularmente encontrar resíduos de bolacha. Abres um livro e encontras resíduos de bolacha. [Risos] Consegues imaginar exactamente o que se passava naquele momento do passado com uma pessoa que não conheces.
JF: Tem um poema preferido?
Regresso muitas vezes a um poema do Pessoa. Nem é um poema inteiro. É ao mesmo verso, “caí no areal e na hora adversa”. Regresso muito a esse texto, e em dois ou três livros meus aparece como epígrafe. Eis um verso que de vez em quando me assalta. Na hora adversa.
JF: Quais as suas influências literárias (óbvias e menos óbvias)?
António Maria Lisboa, Cesariny. Nos meus versos surge de modo óbvio uma certa costela surrealista, mas existe um grande escritor do neo-realismo que me influenciou bastante, o Carlos de Oliveira. Sobretudo o Entre Duas Memórias, que é um livro...! Quando eu era jovem, o Micropaisagem chamava-me mais a atenção, mas com o crescimento aprendi a gostar mais do Entre Duas Memórias. E a gostar também de um texto dele que os neo-realistas odeiam, que é A Descida aos Infernos, um longo poema com aspectos metafísicos (os neo-realistas começaram logo a criticá-lo). São zonas da poesia do Carlos de Oliveira de que gosto imenso. E do António José Forte, do Pedro Oom, do Herberto, necessariamente, e da minha querida Luiza Neto Jorge, claro.
JF: O que é ser um poeta realista?
Acho que o problema do realismo é tentar ser uma fotografia fidedigna, um fotojornalismo do mundo, uma demagogia do real. Esse é o problema. Porque sempre que o dito escritor realista transcende isso e se afasta dessa tentativa de cópia, torna-se logo mais interessante. Porque o real é o próprio poema, no seu modo estético de tratamento do assunto. Veja-se o Cesário Verde, que muitos rotulam de mero realista. Mas ele olha o real com uma exuberância quase expressionista. O realista é um agente redutor, confinado a uma visão do mundo banal, de comportamentos pequenos, limitados. Isto nada tem a ver com o eventual compromisso com a realidade. O absurdo de Samuel Beckett está fortemente vinculado ao real, assim como o de Kafka. Na multiplicidade de olhares do Cesário temos até o poema do piquenique, que é um apontamento inspirado no impressionismo pictórico.
JF: A sua poesia é comprometida com a realidade?
A minha escrita reflecte o bombardeamento constante do mundo em redor. Não sou imune aos noticiários e no meio do exercício em prol do prazer surgem a toda a hora os horrores do mundo, que me incomodam e sufocam a liberdade. Mesmo lá para trás, em 1991, no meu Campo de Tílias, que não é um livro tão “comprometido com a realidade”, existem poemas em que o encontro amoroso dentro de uma pensão é pontuado com um olhar para fora da janela do quarto. Não é possível o bem-estar sem ser num enclave num universo incómodo. Eu diria que escrevo uma poesia sujeita a uma enorme pressão urbana, atenta à consciência dessa pressão colectiva. Por exemplo, será o pintor Edward Hopper um realista?... Será o poeta Philip Larkin um realista comprometido com a realidade? Ele, que faz poemas que são retratos fidedignos do que vê da janela do seu quarto... Os namorados no jardim... Mas projectando nos versos uma reflexão sobre o que está a ver que supera qualquer fotojornalismo. Empregamos sempre em doses escolhidas mais ou menos objectividade ou subjectividade, o poema é o caldear destas presenças linguísticas.
JF: Tipografia ou poesia?
Aquilo que descobri aos 17 anos é que não bastava falar com as pessoas próximas, havia que expandir a fala a um auditório, que é o mundo. Havia que amplificar a expressão individual – daí eu aproximar-me da arte, da escrita. Acrescentei a isto a aprendizagem do processo industrial tipográfico, a palavra impressa em múltiplos, porque eu queria perceber quais as possibilidades de distribuição das linhas numa página. Numa tipografia aprende-se isso, a paginar. E isto é importante, há poemas que se decidem na silhueta que aparece na página branca. Por vezes o poema surge no meio da rua, anota-se num papelinho, nas costas de um talão de multibanco – não está ainda definida a notação final do poema, até porque o espaço do papel é demasiado exíguo para a respiração dos versos. Essa só surge quando se entra em trabalho de “arrumá-lo”, e de que a impressão em livro dá fé. É importante saber como se faz sair o poema da folhinha onde o anotas, onde condensaste o momento. Isto se os versos pretendem um destinatário alargado.
JF: “A um único apelo tenho respondido: acção poética”. Existe poesia sem acção poética?
É capaz de existir. Não podemos ser injustos para com os que todos os dias saem para ir trabalhar e depois conseguem realizar obra de arte fora da hora do trabalho. É o seu exorcismo. Para mim isso seria complicado, angustiante, embora perceba que alguém consiga aplicar-se numa obra criativa e ser ao mesmo tempo funcionário dos CTT. Mas para mim, todo o meu dia-a-dia foi sempre dedicado ou a pensar no poema ou nas artes que lhe estão conexas: a leitura de outros autores, por exemplo. Tive que fazer muito fora da dita acção poética para pagar as contas, como toda a gente, mas fugi sempre à subordinação a qualquer espécie de ordem de outrem. Tentei ser o promotor da minha própria escravatura, não estar ao serviço de ninguém. Até pode nem haver livros a serem publicados, como aconteceu durante os dois ou três anos em que não escrevi. Mas eu já era outra pessoa que estava ali, outra maneira de entender as coisas, a acção poética subjazia a tudo.
JF: É um poeta um especialista em minas e armadilhas? Um guerrilheiro?
Minas e armadilhas porque o mundo não te facilita nada. Quando tu escolhes só a arte, eu só faço isto, é evidente que o mundo passa a ser um mundo armadilhado, porque o mundo não quer que empregues toda a tua energia, todo o teu ser, o que existe em ti de humano em algo que lhe é adverso. O mundo quer que tu não penses, que tenhas comportamentos de massa, de rebanho, sujeições manobráveis. Se tu pensares, se tiveres tempo para pensar, ficas com a oportunidade de conquistar autonomia. Se estiveres liberto das prisões da casa, do carro, etc., ficas em condições de voltar costas ao mundo a qualquer momento, não tens nada a perder. Estás no absoluto território da liberdade. Mas isto é muito complicado – o terreno que se pisa está minado, porque as contas caem-te sempre na caixa do correio, o sustento diário não se eclipsa. E é caro. Eu pago para o Estado não vir à minha beira, para o ter lá longe, o mais longe possível. E isso já é uma armadilha, um terreno minado.
JF: E um editor o que é?
É complicadíssimo, mas é maravilhoso. Um editor é alguém que confere reconhecimento a outrem, por gosto próprio – isto é tudo subjectivo, porque posso gostar de coisas que outros não gostam – mas, em princípio, o editor é aquele que reconhece em alguém virtudes e que deseja imenso que terceiros partilhem desse encontro, desse imprevisto. Esta é a minha atitude como editor. Sei que os editores encartados que por aí há não são isto – são apenas quem reconhece se uma coisa é vendável ou não é vendável. Eu nunca pensei dessa maneira. Por exemplo, a antologia Sião. Foi feita numa abordagem de gosto, dentro de parâmetros temáticos – há um fio condutor temático que a atravessa – e do pressuposto do imperativo em estabelecer para a poesia portuguesa um cânone poético diverso. Aquilo que na altura nós designámos por dragagem do gosto. Mas a selecção de autores e poemas nada tem de científico ou de estritamente literário. A abordagem foi muito menos os preceitos da história da literatura e mais os preceitos da história pessoal cultural dos antologiadores (Al Berto, Rui Baião e eu próprio). A minha atitude como editor é idêntica: dar a conhecer um gosto e uma avaliação pessoais. Embora, claro, sempre atento ao contexto em que se publica, atento à história viva do momento.
Por isso, terei cometido alguns “erros” de perspectiva, que são sabidos – “não-autores” publicados que imaginei poderem vir a ser autores confirmados. É o apanágio das vanguardas: estarem na linha de risco.
JF: E há algum autor que sinta que tenha valido a pena?
Há bastantes. Veja-se, por exemplo, só para falar dos portugueses, o Rui Baião, o Fernando Luís Sampaio, praticamente começam ali, a Adília, o Manuel de Freitas – há uma série de autores que fizeram um primeiro ou um segundo livro porque eu gostei imenso do que estavam a escrever, e depois lá seguiram os seus caminhos e consolidaram esses caminhos.
JF: De que é que gostou da Adília no momento em que a publicou? Gostar da Adília na altura não é o mesmo que gostar dela agora – na altura era uma coisa estranha…
Há um livro dela anterior aos que eu publiquei – eu publiquei O Poeta de Pondichéry e mais um outro – mas antes ela tem um chamado Um Jogo Bastante Perigoso que é um grande primeiro livro em qualquer parte do mundo. Não deixa adivinhar o que vai ser a Adília Lopes depois, mas a Adília que eu recebo era a que eu conhecia daquele livro e, portanto, a minha recepção foi diferente da que tenho hoje. Hoje tenho menos interesse nas coisas dela, porque acho que acabou por banalizar processos, entrou em repetições… Reconheço-a, mas já não me interessa tanto. Mas aquilo que eu publiquei dela, e até relativamente tarde, era inequívoco, tinha uma vitalidade enorme. O Poeta de Pondichéry acrescentava uma coisa a O Jogo Bastante Perigoso: este livro era construído por micro-narrativas em poema; O Poeta… é uma peça única, coesa, a escritora consegue um livro conceptual, algo que só recentemente estamos todos a fazer. Até muito tarde, um livro de poemas não era mais do que um agrupamento de poemas. Raros serão os exemplos comparáveis ao livro As Aves de Gastão Cruz, ou ao Limite de Idade de Vitorino Nemésio. Actualmente, nem se põe a hipótese de um livro de poemas não ser um todo coeso, um conceito. Insisti sempre muito com os escritores do meu círculo, a partir dos anos 75 em diante, que um livro de poemas devia ser entendido como uma “história” única. A minha 1.ª versão do Asfalto, o meu segundo livro na & etc, é uma mistura de diferentes “ficções” poéticas, por diferentes razões da época. Desde influências das técnicas de cut up de William Burroughs ao surrealismo cruel de Antonin Artaud, há ali um pouco de tudo. Por exemplo, um dos primeiros poemas é construído imitando a linguagem de género policial de Frank Gruber. Podemos pegar em qualquer sinal do mundo e trazê-lo para dentro de um poema.
JF: Em 2018, continua fiel a si próprio, aos seus princípios e formas de acção? É mais livre, ou mais solitário? É mais poeta, ou mais editor?
Neste momento não sou sequer editor – estes livros recentes saíram por motivos de força maior. Sou mais poeta e menos editor. Sou necessariamente mais solitário, e até por razões comezinhas e do dia-a-dia: chateio-me mais com as pessoas, não sendo intolerante, mas não quero mesmo perder tempo com pessoas que só dizem e fazem disparates, portanto estou mais sozinho. Há cada vez menos pessoas com quem eu possa falar quando acabo de escrever um poema. Há cada vez menos porque, até os que não escrevem e são nossos amigos, estão cada vez mais sintonizados no Facebook. Tenho amigos que dizem “sim, mas eu leio no computador!”, e eu fico de boca aberta: “no computador? mas isso além do mais faz mal à vista!”. Eu tenho o dicionário do Inocêncio, muito usado no alfarrabismo, em CD e em livro: no disco faço o edit find daquilo que procuro, vejo em que tomo está e depois vou buscar o tomo à estante. Seria uma chatice enorme se eu não tivesse o disco, seria moroso… Mas trata-se de um mero utensílio, um electrodoméstico, como se fosse um aspirador, por exemplo – não tenho o culto da informática, nem podemos deixar que isso nos devore. Há uma tendência para o vício do computador como se não houvesse mais mundo, e com o computador portátil que é agora o telemóvel a absorção é total, as pessoas ficam desligadas do mundo. E é por todo o lado, vai-se ao banco, vais fazer um depósito e põem-te um écran à frente do nariz para assinares – mas é impossível, há qualquer coisa no atrito, falta o atrito, uma textura de papel que a tua mão reconhece…