Entrevista a Armando Freitas Filho
Nuno Amado
Entrevista a Armando Freitas Filho
Rio de Janeiro, 2 de setembro de 2019
Armando Freitas Filho vive há 50 anos no pacato bairro da Urca. Recebeu-nos com uma gentileza rara, misto de timidez e bondade, e falou-nos do milagre que foi a sua ida, acompanhado pelo seu pai, ao apartamento minúsculo e forrado de livros de Manuel Bandeira e de como este tranquilizou o seu pai quanto ao facto de o filho tão cedo gostar de Rimbaud. E não nos esquecemos de falar ainda na paisagem conflituante do Rio de Janeiro.
JF: Gosta de poesia?
Desde criança gostava de escrever. No colégio primário escrevia com facilidade redações. Namorava a poesia de longe ainda. A partir dos 16 anos comecei a poetar. Meu pai me deu dois livros fundamentais, que leio até hoje com devoção: Poemas de Manuel Bandeira e Fazendeiro do Ar & Poesia Até Agora de Carlos Drummond de Andrade. Gostava de fazer imitações, pastiches dos poemas deles. Ganhei também um disco onde os dois liam seus poemas: lado A, Bandeira; lado B, Drummond. Decorava a poesia deles como quem decora uma música. Esses dois livros e o disco mantenho até hoje com total dedicação. São os meus pilares iniciais e definitivos.
JF: Sobre poesia e resistência, disse: “A boa poesia, então, vem sempre cifrada exigindo releituras”. No seu caso, as cifras têm sentido duplo, porque os números são presença assídua na sua poesia, desde logo nos títulos de alguns volumes. Para que servem os números na sua poesia?
Nunca fui bom em aritmética. Talvez para vingar-me dos fracassos usei muitas vezes, digamos assim, para ordenar o que escrevia numa singela matemática que procurava, sempre em verso livre, alguma simetria.
JF: No prefácio a Raro mar, João Camillo Penna refere a ligação entre o poema e “a notação do pensamento no tempo”. Porquê esta necessidade de deixar marca temporal de quando escreve?
Creio, sem poder afirmar com certeza, que marco no que escrevo o tempo em que vivo e no qual vou morrer.
JF: O primeiro poema deste livro, “Outra receita”, apresenta uma poética alternativa ao “Catar Feijão”, de João Cabral de Melo Neto. Parece desafiar a atenção do leitor de poesia, que em João Cabral dependia da “pedra quebra-dente”, de outra maneira. Qual é?
Acho que o “desafio” você acertou em cheio. A minha “pedra” é uma mistura da drummondiana e cabralina, que eles me deram de mão beijada. Assim pretendo, pelo menos. Afinal, meu querido João Cabral foi a princípio um discípulo fiel de Carlos Drummond. Tentei, então, valer-me desses quitutes para oferecer aos leitores um prato modesto, mas com algum tempero novo.
JF: Em muitos poemas seus, há referências constantes à leitura, à escrita, ao material de escrita, ao livro, à edição, à materialidade do livro. “Escrever” é um verbo central na sua poética?
Sem dúvida! Você enumerou os elementos que, volta e meia, uso. O verbo para mim é o verso (e por que não, penso comigo) e o reverso das faces de uma possível medalha.
JF: Há poemas em que nomeia materiais específicos de escrita, desde a clássica Bic (a Cross, a Pilot, a Parker, as suas ninfas, como diz num poema), a máquina de escrever, o teclado, à pena de há dois séculos. Escrever um poema no teclado é diferente de escrever com a caneta?
Sou um escritor trifásico, desde que o computador nasceu. Primeiro, escrevo à mão; segundo bato à maquina; terceiro, dedilho no computador, que uso como uma máquina de escrever moderna, somente. No fundo de mim, preferiria escrever com o dedo, se possível fosse.
JF: O extraordinário poema “Canetas emprestadas” é dedicado a Ana Martins Marques e nele se percebe uma dupla e comovente homenagem: à nova Ana da poesia brasileira e à inesquecível Ana, sempre muito presente na sua poesia. Quem foi ela e que importância teve e tem ainda na sua poesia?
Ana Cristina foi minha amiga fundamental. E eu amigo dela, posso dizer. Não foi à toa que falou com a mãe pouco antes de morrer, que se acontecesse algo com ela, todo o seu acervo deveria vir para minha casa. E assim foi feito. Que dedicou seu livro final, A teus pés, a mim e eu pedi que ela escrevesse um prefácio para Longa Vida. Os dois livros foram lançados no mesmo ano, em 1982.
Ana C. foi, de longe, a melhor poeta de sua geração. A mais instigante, a mais preciosa. Ela e eu conversámos muito. Não só sobre livros e arte, mas sobre a vida em geral, sem nenhuma censura. Na revista piauí, número 87, relato um longo telefonema de 7 horas, que é uma boa amostra de como vivíamos, conversámos, brigávamos e fazíamos às pazes. Escrever sobre ela é sempre sentir saudade.
JF: Noto em muitos poemas seus que convive, de forma amena e generosa, com poetas de gerações mais jovens. Tem aliás um Pingue Pongue com Alice Sant’Anna. De que maneira os de agora são influências para si?
São poucos. Não porque não gosto, mas, devido a minha idade, não consigo compreendê-los como deveria. Mas posso citar um trio de alta qualidade: Ana Martins Marques, Laura Liuzzi, Alice Sant’Anna. Quanto à influência, não a sinto ainda. Aliás, gostaria que fosse possível, porque me renovaria um pouco. Quem sabe ainda tenho tempo de usufruir alguma modalidade nova?
JF: E os de antes? Sei que tem “três mosqueteiros”...
O poeta insuperável da poesia brasileira é Carlos Drummond de Andrade. E não somente da poesia brasileira. Anteontem, abri ao acaso “a Bíblia”, como eu chamo a sua obra e deparei com um poema antigo e pensei com meus botões como eu tinha sido ousado (pelo menos isso) de tentar uma proximidade com aquele Monstro Milagroso Magnífico? Com quem conversei e me correspondi sempre que pude, para ouvir sua voz seca, seus olhos azuis e sua generosidade impecável. Portanto, o porquê é por isso: sua poesia não envelhece uma letra, está sempre nova em folha.
Eu amo Carlos Drummon de Andrade e um dia ao chamá-lo de senhor ele me disse: “Não me chame de senhor: sou seu amigo”. É curioso que anos mais tarde o crítico Antonio Candido, outro Milagre brasileiro, usou a mesma sentença quando eu vivia encetando conversas chamando-o de senhor.
JF: Que outros mosqueteiros tem, fora do Brasil, por exemplo?
Camões, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Herberto Helder, Luiza Neto Jorge, Emily Dickinson, Marianne Moore, Baudelaire, Rimbaud, Valery, Brecht, Garcia Lorca, Jorge Luis Borges, e se mais não digo é por que não vou acabar nunca.
JF: No primeiro poema de Rol, descreve a leitura difícil d’Os Lusíadas, os obstáculos do leitor, desde o “vocabulário castiço” à “análise sintática dos seus versos”. O que lhe diz Camões?
Camões é o criador da poesia em português. Não haveria poética sem ele. Talvez nem português esmerado.
JF: E que relação tem com o Fernando “Falsário Pessoas”?
Foi uma brincadeira, de mau gosto com toda certeza. Fernando Pessoa é tão intenso, tão extenso, que às vezes os heterônimos me confundem; todos eles nas minhas leituras me parecem, de quando em vez, ser ele em várias fases, disfarçados e não falsários.
JF: Diz noutro poema que se desentende consigo quando se lê nos que o leem e que montados sobre si escrevem na resenha, no artigo, no ensaio, na dissertação. Acha que os críticos não acertam?
Maioria acerta, outros não. Não só aceito a crítica; preciso dela. Preciso até das que são contra, por mais que doam. Afinal de contas, onde há fumaça, há fogo.
JF: E gosta de ler crítica literária?
Adoro ler críticas, ensaios, etc. Sou meio autodidata. Por teimosia e para tristeza dos meus pais, não fiz faculdade. Mas fiz Antonio Candido de Mello e Souza com todo afinco e proveito para minha vida toda.
JF: O Rio de Janeiro é tópico central na sua poesia, e nem sempre é uma cidade maravilhosa; nos últimos livros é até um cartão postal violento. A paisagem do Rio – morro e mar – é sempre conflituante?
Sem dúvida nenhuma. E cada vez pior. Também com os canalhas que "governam" o Brasil atualmente não poderia ser de outra forma. Mas alguém pode nos ajudar ainda. Afinal, Lula, o preso mais livre, está em plena ação. Não como um salvador único, mas sim com o Partido dos trabalhadores.
JF: Falava da violência das suas fotografias poéticas do Rio de Janeiro, mas a verdade é que a violência está presente noutros textos seus, e a própria ideia de que o ato de leitura é um ato que implica uma certa violência, até o corte fino do papel… Em que medida?
O Brasil é um país violento. De roubos e assassinatos contínuos desde que me entendo. Não poderia ser de outro jeito, pois a escravidão foi a última a ser abolida, e mesmo assim mal e porcamente. Minha poesia, infelizmente, reflete isso. A medida é pois esta.
JF: Num mundo só de poemas, e menos de poetas, qual seria o seu poema favorito?
O meu poema preferido é “A máquina do mundo” de Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro Claro enigma, na metade do século passado, em 1951.
JF: Tem alguma embirração linguística e/ou poética?
Nenhuma. Até gosto quando diferem de mim. É como uma análise em grupo, para pôr o contrário de mim, ou quase contrário de mim, para ver como se dá o contacto. Se eles são melhores, se eu sou melhor, é uma espécie de briga verbal que eu noto e procuro ouvir. É uma espécie de estudo, que eu leio a poesia estudando, o tempo todo. E isso eu não abro mão de fazer contrastes e confrontos. Eu gosto disso. Não tenho preconceitos linguísticos, nunca pensei exatamente nisso. Eu gosto até de ser diferente.
Por exemplo, eu li um poema hoje de Gabriela Mistral, Prémio Nobel de 1940. Eu fiquei tão encantado, pensei: “Como é que esqueci dela?”, não a leio há muito tempo e não tem nada a ver comigo no sentido estilístico. Tem a ver com Bandeira, talvez, de escrever — eu amo isso nele — de escrever tanto em tão pouco. É uma coisa que eu considero um milagre. Tem um poema que eu recomendo, porque é um poema curto, acho que tem 3 estrofes ou 4, estrofe pequena, chamado “Tema e Voltas”. É uma coisa linda. É uma amostra de que Manuel Bandeira era capaz de escrever tão pouco. Aí sim, eu gostaria saber escrever assim. Agora, Drummond, eu não posso querer; eu sei que não vou chegar nunca. E Bandeira eu tenho uma micro-esperança de que posso, vamos dizer, emparelhar um pouco.
JF: Tem especial apreço por algumas palavras, formas poéticas ou figuras de estilo?
Não. Tudo e todas me servem.
JF: Temos uma secção sobre curiosidades literárias na Marginalia do nosso site. Lembra-se de alguma que pudesse partilhar connosco?
Copiei o livro A luta corporal de Ferreira Gullar à mão, de capa a contracapa, para entendê-lo melhor. Tal como, presumo, o conto de Jorge Luis Borges “Pierre Menard, autor de Quixote”.
JF: Num hipotético verbete da enciclopédia da poesia brasileira escrito daqui a 100 anos, diga-nos uma frase apenas que gostaria de ler sobre si?
A morte inexiste.