Adio a hora de me deitar e já hibernas
Maria S. Mendes
Adio a hora de me deitar e já hibernas
antecipo o tempo de moldares ao meu ventre os teus joelhos
assentares nas minhas coxas os teus pequenos pés cálidos
pousares-me nas faces as tuas mãos pintadas pela Josefa Ayala
expirares sobre a minha boca o teu hálito sem molares
suspirar-te a adoração que te tenho
sorver-te o odor essencial do paraíso palpável da nuca,
umbigo universal de tudo.
Prolongo a saudade para aumentá-la
num arranque acorrentado para a alvorada.
Penso:
o teu pai sofre mais porque nem o gato ronrona quando não estás.
Lembro-me então de que não tenho gatos
e enfrento a repulsa ao sono que nos repara separadas
em terras com geografia elástica
deitadas sobre o mesmo lençol.
Acordo com o teu corpo em febre ao meu lado.
Sinto-me uma aprendiza de bruxa
a pegar fogo às labaredas na tentativa de extingui-las
enquanto inundo o quarto num afã de recém-dona de casa.
Acordas.
Ofereço-te goles de água,
pergunto-te “Queres abraçar-me?”,
respondes “Não posso tocar em nada
que esteja quente”. Escapa-se-me
o riso clandestino da madrugada.
Encaracolas-te ao meu braço
na proporção de um bonobo numa aroeira
como quando me enrolava à minha mãe
- só não sou grisalha.
Gostaria de morrer como as oliveiras
que apenas enrugam,
albergar-te sempre.
Tu deitada na sombra argêntea, protegida da canícula.
Tu deitada na sombra argêntea, abrigada da lua fria.
Tu a jogar à macaca com piões a rodopiar por ti acima.
Tu grávida, cuidando de todas as coisas vivas
a brotarem dos teus calcanhares e pulsos,
a tua boca a babar hera como a Primavera renascentista
vestida de cravos rosas centáureas
pés de seda pisando um impossível musgo
inconsciente de seres deusa como só uma.
Catarina Santiago Costa
Catarina Santiago Costa nasceu em Lisboa, em 1975. Frequentou o curso de Comunicação Social na Universidade da Beira Interior (Covilhã) e licenciou-se em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa (Lisboa). Ambos os seus livros, Estufa (2015) e Tártaro (2016), foram publicados pela editora Douda Correria. Participou em edições da Enfermaria 6, Diversos Afins (Brasil), Flanzine e Tlön. A poesia é a lente através da qual vê tudo.