Esta mulher dormindo
Maria S. Mendes
Esta mulher dormindo
Mais um dia que se ajoelhou de faca na boca.
Esta mulher em máximo equilíbrio, sorrindo como uma estátua.
Esta mulher feita de carne e sono, embrulhando os filhos por estrear
Falhou em tudo e ri-se, de carvão a cercar o estômago
As narinas muito abertas à procura do ar.
As pernas tranquilas para o outro lado do corpo
Uma dor de furar cidades numa cara adolescente, estreita,
entre dois olhos
É mesmo ela, sem dúvida,
esta mulher de diversão para qualquer dia
um gesto desajeitado para qualquer ombro
o maior esquecimento da família, até aos domingos
E volta a cara para outro lado, de preferência à procura da luz
Mulher nua, no quarto, desistindo da sua lírica,
Olhando o tecto
Mulher encolhida na própria sina, encontro fatal
Os olhos comem
O corpo alcança
A mulher ergue-se no túmulo de outra vida
Desaprendendo de ser gente
Mulher de bater à porta em dias invisíveis
Calada, encostada à condição do seu lixo
Remexendo nele com línguas nos seios
Não lhe resta nenhuma casa, declarou a guerra perdida
Mas há-de vir uma desculpa que lhe baste para o nojo de estar
desperta
e o cheiro contínuo a orfandade
Mulher toda, cavalo elegante, praia
a vida é pouco mais que a humidade daquele quarto,
morte lenta por silêncio,
e um resto de nada
um resto de nada
Cláudia R. Sampaio
Cláudia R. Sampaio é poetisa, mas não só. Em 2014 publicou o seu primeiro livro de poesia, Os Dias da Corja (Do Lado Esquerdo), seguindo-se A Primeira Urina da Manhã (Douda Correria), Ver no Escuro (Tinta da China) e 1025mg (Douda Correria). Desde então, tem colaborado em várias revistas e antologias de poesia. Vive em Lisboa com as suas duas gatas.