Formatei-me muito mais do que queria
Maria S. Mendes
Formatei-me muito mais do que queria
julguei resistir mas o crânio cedia
como uma bola de borracha ao sol.
Percebi isso ontem
no reflexo de uma janela:
a minha cabeça estava quase igual às outras todas.
Não, não sinto um grama
de poesia em todo o corpo,
e pesam-me as inevitabilidades mesquinhas.
O prazo do ketchup expirou há pouco
e todos me vão recriminar,
já sei, por eu não
reparar nesses números tão pequenos
que apesar do esforço me escapam
e fogem num resquício de distração distraída.
Estranha, a evolução da vida.
Há que continuar a olhar
a lata, o frasco, a casa.
Toda a mercearia me engoliu há muito.
E são e estão, tanto que não saberia.
Os filhos matam. Maridos também. Famílias assassinas a matar mulheres todos os dias.
Poesia não, mercearia.
Leonor Sá
Leonor Sá é conservadora de museu e mentora de projetos de proteção do património cultural. Doutorada em Estudos de Cultura pela Universidade Católica Portuguesa, com uma tese sobre os primórdios da fotografia judiciária, fez em tempos um mestrado cuja dissertação incidia sobre Kafka e a Utopia. Resultado: teve um percurso profissional kafkiano, mas nunca deixou a utopia - nem a poesia (senão morria).