Sextina
Maria S. Mendes
“A sextina é, redonda e inquestionavelmente, inadmissível”
António Feliciano de Castilho,Tratado de Metrificação Portuguesa.
Sextina
Enquanto prossegue a vida
vai-se remoendo a morte;
parece estar feito o mundo
para só mostrar um verso;
ora dia, ora noite,
de dois, um só fica claro;
e mesmo o dia mais claro
esconde os segredos da vida;
a lua aparece à noite
branca, em vestidos de morte,
como alma doutro mundo,
coisa lembrada num verso.
Mas não caberá em verso
um só pensamento claro
sobre a escuridão do mundo;
a vida pede mais vida
além do cair da noite,
não se contenta de morte.
Assim, adoça-se a morte
repetindo-a no verso
que é curto e cai como a noite
escura, sobre o fundo claro
do papel, da luz, da vida,
para atravessar o mundo.
E enquanto dura este mundo
e a dureza da morte
for mais pesada que a vida,
e as separações do verso
disserem do amor claro,
qualquer dia será noite.
Pois aqueles brilhos da noite
que vêm do fim do mundo
abrem um abismo claro
entre a tristeza da morte
e a doçura do verso
que queria amar a vida.
Mas sejam a vida e a morte
o mundo cortado em verso
de quem passa a noite em claro.
João-Paulo Esteves da Silva
João Paulo Esteves da Silva (músico, tradutor, poeta). A relação da vida com a poesia divide-se, de facto, em quatro fases. Dos quatro aos 10 anos, fazia versos para diversão da família e visitas, sentindo nestas exibições uma vergonha só comparável à exibição pública forçada das partes genitais. Dos dez aos vinte, descobriu as estratégias e os engenhos que lhe permitiam esconder-se atrás da linguagem e escrever textos surrealistas ou "nonsensicos" onde ninguém o poderia apanhar despido e de emoções à vista. Dos vinte aos trinta entrou num buraco negro à procura da música perdida, pelo que não escreveu uma única linha. Dos trinta em diante, após ter encontrado uma passagem entre a música e a linguagem, vem escrevendo poesia de forma obsessiva, com cada vez menos vergonha, tentando equilibrar o engenho e a nudez emotiva.