Vários, Rosa Oliveira
Maria S. Mendes
“Ah, chi mi dice mai”
interessava-se por figuras outrora importantes
obscurecidas pelo tempo
como Lorenzo da Ponte professor de literatura
judeu convertido ao catolicismo padre dissoluto acusado de concubinato público expulso durante quinze anos da veneza poluente
hoje temos gente à procura de um pronto-a-pensar
especialistas em tecnologia vintage
hoje Lorenzo da Ponte submete guiões
a produtores ameaçados
sempre a jogar no tabuleiro errado
até lhe lançarem a carta da morte
matar e ganhar
é só uma piada insider
verde como o arsénico exclusivo
dos vestidos mais chiques
compreendeu então que
matara o homem errado
estava encurralado por dois roteiristas
workaholics cegos
tentou o que Lorenzo experimentara duzentos anos antes
um filme cínico sem sucumbir à amargura
um quase happy end que o livrasse
do interminável aço-navalha
da sereníssima república
closer reading
agora que dobro as meias
de há vinte anos
lavadas e secas
prossigo a alegoria
das riscas discretas
vermelhos, beges
não são vermelhos e beges
são cerejas e nozes
frutos difíceis por razões diferentes
tanto quanto os frutos podem
lançar dados na
sua lógica intrínseca
de frutos infiltrados
na razão humana
de quem dobra as meias
em que eles estão inscritos
ditames da poesia
I
não vale a pena implorar
ou chorar
sobre as caixinhas esfrangalhadas
das metáforas
também já encurtei a métrica.
é menos doloroso
e pode ser que o sentido não fuja
eu nunca fugi
estive sempre aqui
a ver passar os veados
a desfiar os rosários
de enigmas
a preparar-me sete dias por semana
para mijar no tapete dos vizinhos
II
provavelmente
é preciso irritarmo-nos
e lançar um dardo venenoso
atravessando o ar frágil
é preciso desfiar teorias
e lambuzar a cara de certezas
por mais pífias que sejam as convicções
é preciso fazer esvoaçar o cabelo
mesmo que não haja vento
Rosa Oliveira
Rosa Oliveira nasceu em Viseu, em 1958. Publicou os ensaios Paris 1937e Tragédias Sobrepostas: Sobre O Indesejado de Jorge de Sena. Foi leitora na Universidade de Barcelona e é professora no Ensino Superior Politécnico.
Cinza, o seu primeiro livro de poesia (Tinta-da-China, 2013), foi galardoado com o Prémio PEN Clube Primeira Obra. Tardio, igualmente publicado pela Tinta-da-China em 2017, obteve o Prémio Literário Fundação Inês de Castro 2017.
Tem poemas editados nas publicações literárias Relâmpago, Colóquio-Letras,Suroeste(Badajoz, 2016), Cidade Nuae nas antologias Voo Rasante(Mariposa Azual, 2015) e Os cem melhores poemas portugueses dos últimos cem ano (Companhia das Letras, 2017).
Publicou na Granta 8 (Tinta-da-China, 2016) o primeiro conto de uma série em que presentemente trabalha.