Soleira, Elisabete Marques
Nuno Amado
Soleira
Os mortos parecem estiolar como um lírio branco à entrada da noite.
Mas metem-se na solidão das casas, em livros, em gavetas.
Levantam as poeiras, têm rastos semelhantes a caudas de cometas.
Deles emana fósforo, uma ligeira vibração no espaço.
Os mortos desenvolvem-se nas fissuras,
e alastram à maneira dos musgos e dos líquenes.
Não sabem de terras enfeitadas com estátuas ou com bandeiras,
nem dos utensílios elementares.
Por vezes ficam parados nas soleiras,
suspensos por uma linha inconcebível.
Pressentidos ao virar de uma esquina,
no pêlo de um cão vadio, num qualquer quarto barato, nos narcisos.
Eles abrem o negrume em O, um murmúrio grave,
múltiplo, como um enxame de abelhas a passar rasante à minha orelha.
Tocam-me a respiração morna saída entre dentes,
enquanto olho a tenebrosa expansão das imagens,
uma lâmina fria por dentro destas correntes de sangue.
Dos mortos chega-me um retrato.
Com uma flor, debaixo de um arco, emerge o seu aspecto disforme e irreal:
roupas exemplares que vestiam em dias de festa ou nos funerais.
Elisabete Marques é investigadora no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (Faculdade de Letras da Universidade do Porto). Publicou dois livros de poemas: Cisco (2014, Mariposa Azual) e Animais de Sangue Frio (2017, Língua Morta).