Vários, Ana Luísa Amaral
Nuno Amado
História Politicamente Correta para @s mais pequenin@s
Se eu calçasse o 33
era muito boazinha
falaria aos passarinhos
ia ao baile disfarçada
de princesa
E conhecia os pais dele
e dançaria com ele
até quase à meia noite
convencida de que aquilo
era o amor
Se eu calçasse o 33
perderia o sapatinho
e ficaria sem fôlego
de correr desaustinada
ao longo da escada-
ria. Que maçada!
Se eu calçasse o 33
tinha uma madrinha-fada
a dar-me longo vestido
lantejoula de casada
e servia-me o sapato
de cristal
Mas eu calço o 39
e quem se casou foi ela
a do pezinho pequeno
e olho de Cinderela
Sorte a dela!
Que a Anastácia e a Griselda
ficaram ali sozinhas
sem passarinhos, só ratos
e dois gatos
que não sabem transformar-se
em carruagem
E eu sozinha aqui fiquei
cometendo arte menor,
a de transformar palavras
no que soa ser amor
mas só soa ser amor
Que sorte, a de Cinderela!
Sorte a dela?
É que (diz a outra história,
a feminista)
na noite do casamento,
já depois das badaladas
entre despir o vestido
e descalçar sapatinho
de cristal
o príncipe transformou-se
em rã verde e trapezista
e de veneno mortal
e desatou a morder-
lhe o dedo grande do pé
De bem pouco lhe serviu,
a Cinderela,
pezinho de 33 –
Soneto do navio e do pavio real
Quão curto, meu amor, parece este pavio
que, embora arda de ti, tão longe está do mundo.
Só no verso te toco, te crio, te recrio,
mas sou como navio, proa a rasar o fundo.
Porque tu não és tu, aquela que existiu
em verdadeiros corpos e tempos e lugares,
por quem eu existi, bebendo chuva e frio –
mas tu estavas ali, nesse lugar de estares.
Agora, este pavio não se acende de vida.
Nada se inflama a sério, é só reflexo leve,
e eu falho aqui sozinha, carne, suor e folha.
(Boa comparação seria a de uma rolha
falhando mar, garrafa e a sua boca leve
e fazendo do vinho mistura meio ardida).
Ana Luísa Amaral (1956). Autora de mais de três dezenas de livros, quer de poesia, quer de teatro, quer de ficção, quer infantis. As suas obras mais recentes em Portugal são What’s in a Name (poesia, Assírio & Alvim, 2017) e Arder a Palavra e Outros Incêndios (ensaio, Relógio D’Água, 2017, vencedor do Prémio Jacinto de Prado Coelho). Os seus livros estão traduzidos e editados em países como Inglaterra, Brasil, França, Espanha, Suécia, Itália, Holanda, Colômbia, Venezuela, México ou Estados Unidos da América, sendo que o seu mais recente livro no estrangeiro é What’s in a Name (trad. Margaret Jull Costa, New York, New Directions, 2019). Traduziu diferentes autores, como Emily Dickinson, William Shakespeare ou John Updike. Obteve várias distinções e prémios, como a Medaille de la Ville de Paris, a Medalha de Ouro da Câmara Municipal do Porto, por serviços à Literatura, ou o Prémio Literário Correntes d’Escritas, o Premio di Poesia Giuseppe Acerbi, o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, o Premio Internazionale Fondazione Roma, ou o Prémio PEN, de Ficção. Tem, com Luís Caetano, um programa semanal na Antena 2 sobre poesia, O som que os versos fazem ao abrir. É professora aposentada da Faculdade de Letras do Porto e membro da Direcção do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, no âmbito do qual coordena o grupo internacional de pesquisa Intersexualidades.