Bule, Adília Lopes
Maria S. Mendes
Bule
Adília Lopes
“Nenhuma folha bole”
Sophia de Mello Breyner Andresen, “Estações do ano”
Em criança, detestava ir à escola e ir ao dentista. Invejava a minha avó porque não tinha dentes e não ia à escola. Eu achava divertido usar placa postiça.
20-XII-2017
Em criança, a minha mãe deu-me um livrinho de zoologia cheio de imagens coloridas muito apetitosas. É Zoology, Golden Science Guide, publicado em Nova York em 1962. AS imagens da página 100, tinha de ser a página 100, eram as mais apetitosas. Uma é a imagem dos dois perfis em que também se pode ver uma jarra. A outra era a mais apetitosa mas vejo hoje que é sexista. É o reflexo condicionado. No chão, um rapazinho vestido de azul brinca divertido com uma cobra. Em pé, em cima de um banco de jardim, histérica, apavorada, uma menina de vestido cor-de-rosa já sabe que as cobras podem ser perigosas. Tinha de ser: a menina assusta-se, não se diverte; o menino diverte-se, nenhum mal lhe acontece.
20-XII-2017
Pipi das Meias Altas
Estava a almoçar num restaurante em Lisboa e entrou uma dúzia de nórdicos. A empregada que os foi atender disse mais tarde a um colega: “São da terra da Pipi das Meias Altas, não se percebe nada do que dizem”. Achei graça a isto e lembrei-me da Pipi das Meias Altas. Foi um ídolo da minha infância. Fui ao aeroporto esperá-la. Fomos de táxi, a minha avó, uma vizinha da minha idade e eu. No aeroporto, ouvi uma menina dizer: “o meu sonho era andar de avião...” Não vi a Pipi. O meu pai levou-me ao Jardim Zoológico porque a Pipi ia lá. Aí vi a Pipi. Ainda hoje me lembro do ar dela, acho que ia contrariada. Depois vi uma fotografia dela numa revista, talvez na Flama. Estava numa piscina no Estoril. A Pipi já tinha maminhas. Era afinal uma rapariga como as outras, não era o ser fantástico da televisão. Isto fez-me muita confusão, desgostou-me. Nunca mais acreditei em actrizes. Actrizes são pessoas.
26-V-2018
No Vale Abraão de Agustina, não me interessa a Bovarinha nem as considerações sentimentais. Gosto da página sobre chinelos de quarto de Inverno.
8-XII-2017
A tradição oral
Uma alentejana de Brinches, de uma vez que eu estava com soluços, disse-me para eu beber um gole de água e, sem respirar, dizer em voz alta Jesu. Disse para eu repetir esta operação três vezes seguidas. Os soluços passaram. É uma boa receita para os soluços.
23-XII-2017
Praia
Na praia do Estoril, nos anos 60, havia a mulher dos bolos. Era uma mulher vestida de branco que andava com uma caixa grande de madeira ou de lata, já não sei, a vender bolos pela praia. Eu achava a caixa mágica porque tinha prateleiras e bolos nas prateleiras. Não comia bolas de Berlim, as crianças costumavam gostar de bolas de Berlim, mas eu não me dava com crianças, dava-me com velhas, comia barquilhos com doce de ovos. Também havia nozes, bolinhos de ovo com açúcar em caramelo e uma noz dentro. Eu não gostava de nozes, isto é, do fruto seco, gostava do doce de ovos com o açúcar em caramelo. Penso hoje nas mulheres dos bolos. Como devia ser penoso andar assim com a lata dos bolos à torreira do Sol a pisar a areia a escaldar e a aturar fregueses antipáticos.
27-V-2018
A minha mãe
A minha mãe não sabia cozinhar. Nunca cozinhou. A minha avó materna também não sabia cozinhar e também nunca cozinhou. Isto foi complicado para mim. Gosto de me lembrar das torradas que a minha mãe me fazia ao Domingo no fogão. Eram de pão espanhol, também chamado roscas, um pão que havia nas padarias de Lisboa nos anos 60. Muito fininhas e com muito pouca manteiga, completamente derretida. Não gosto de manteiga. As torradinhas era a única coisa de cozinha que a minha mãe fazia.
27-V-2018
Bichos
Lembro-me de todos os animais que tive. Tenho muitas saudades de todos. Quase todos tiveram mortes trágicas e eu isso não aceito, não há consolação para isso. Nos meus momentos mais felizes, penso, acredito que a ressurreição vai acontecer e que eu abro a porta de minha casa e todos os animais que tive vêm a subir a escada, estão vivos e vão entrar em casa e todos cabem na casa e a casa é eterna.
31-XII-2017
A minha gata Lu, quando tinha um pano perto da tigela da comida, puxava o pano com as patas e tapava a tigela. Fazia o mesmo ao meu prato quando eu acabava de comer.
31-XII-2017