Porém nos transportes
Maria S. Mendes
Porém nos transportes
temos lugares
imaginados
somos publicamente
levados no inverno
de A a B tendo atirado
para longe
para o chão
um cigarro
idêntico ao anterior
mas acrescente-se
nunca é coisa vagarosa
um cigarro aliás
só finjo que percebo
o advérbio vagarosamente
treme tudo nos mundos possíveis
mas voltando atrás
estávamos na paragem
com o tal cigarro
idêntico ao anterior
excepto na maneira de morrer
passa-se a língua pelos lábios
para chegar ao fim
fechar a conta
a um pedaço de tempo
mas estou em dívida
o meu corpo não se esquece
de me lembrar
não administro bem os hábitos
quanto mais
as regulares tristezas
quando pegam fogo
em fundo
raízes por fora
viradas para cima
a pedir luz
como também pede o corpo
não se esquece
mesmo na sombra
há extraordinariamente cores
a pedir luz
no meio
do negativo
os cigarros
serão lâmpadas
sóis
servem
por agora
depois é preciso mais
mais maneiras
de não sermos
livres frutos desimpedidos
tanta sombra
a minha fototaxia fode-me
mas dizia eu
nos transportes
teremos locais imaginados
palavras polaroids
muito escuras
quem não as tem
na esperança de morrer menos
reservar algumas estações
românticas como termómetros
quando o mercúrio deixou
de ligar à sua vocação
de Sísifo
dos pequenos intervalos numéricos
deixou-se ficar ali
ou escapou
para ir morrer longe
ou perder-se da memória
ou nela
não há diferença
já somos restos
se fugirmos a todas as dívidas
fica o quê
o autocarro não chega
e o sol põe-se
Miguel Cardoso
Miguel Cardoso vive em Lisboa. Ensina, traduz. Escreve em longos problemas respiratórios. À noite lê Albas e Ruy Belo. A poesia é para esperar por manhãs seguintes. Às terças e sábados levanta-se. Vai à Feira da Ladra. Ler também aqui.