Cães Que Brincam
Maria S. Mendes
Cães Que Brincam
I
Dois cães brincam na relva.
Disputam entre si, como se fosse
um apetecido despojo de batalha,
um trapo que um deles descobriu algures.
Um trapo que a seu tempo foi julgado inútil
e jogado fora – mas que, como se vê,
tem afinal enorme utilidade.
II
Os cães são ainda muito jovens
e pouco experientes. Fazem da posse
do trapo velho uma questão de honra,
e não sabem
que não é realmente com um trapo
mas sim com a vida ela mesma
que estão a brincar, quando se roubam
com ardor o trapo e correm estouvados
com eles nos dentes, embatendo nas coisas.
Ou será que acham que
vida e trapo são uma coisa só?
III
Há nos cães que brincam,
que arruaçam e arremetem
e rosnam e sacodem entre os dentes
um trapo que pelos vistos não é
um trapo simplesmente –
há neles um equívoco que convém desfazer.
Eles não brincam com um trapo.
Nem tão pouco com a vida,
Como acima se disse precipitadamente.
Visto tudo a frio, nem sequer
se pode dizer que brinquem.
A vida, sim, é que brinca com eles
até se cansar deles e os pôr de lado.
A.M. Pires Cabral, “Cães Que Brincam”, Cobra d’Água. Lisboa: Cotovia, 2011.
Aqui publicado com a autorização do autor.
Gosto deste poema porque se esforça por não ser uma alegoria simplista, pois, apesar de evidenciar a riqueza do potencial metafórico existente na imagem de dois cães à luta por um trapo velho, tenta que estes cães, que podem ser símbolos hipotéticos de tudo e mais alguma coisa, nunca deixem de ser dois cães a brigar por um trapo velho. A virtude maior do poema reside no ímpeto autocorrectivo despudorado em que se baseia essa tentativa esforçada de evitar que o poema se transforme por completo numa especulação melancólica, não obstante o final do poema parecer indicar isso mesmo. Trata-se de um daqueles casos em que a luta interessa mais pelo seu valor enquanto exercício do que pelos seus resultados finais.
O combate entre os cães é alegorizado no poema por uma disputa entre um plano descritivo e um plano meditativo. Logo na primeira parte encontra-se esta tensão: à descrição da imagem da batalha dos cães impõe-se uma reflexão sobre a utilidade das coisas consideradas inúteis, reforçada pela presença insinuada do provérbio “velhos são os trapos”. O primeiro verso da segunda parte obedece a um impulso correctivo na medida em que regressa à imagem original, dois cães a brincar, sendo que aqui o carácter lúdico depende da alusão à juventude dos contendentes.
Este regresso, que irá repetir-se adiante, sugere que o poema se desviou do caminho inicial e entrou num trilho indesejado, aquele que é formado pelos versos de natureza meditativa sobre a utilidade das coisas. No entanto, esta tentativa de correcção rapidamente resvala para uma especulação à volta dos conceitos de Propriedade, Honra e Razão que o poeta associa ao duelo dos cães, os quais, por momentos, quase se tornam metáforas pobres ao serviço de uma crítica à ganância humana e só se salvam desse destino devido à pujança descritiva dos versos seguintes: “quando se roubam / com ardor o trapo e correm estouvados / com ele nos dentes, embatendo nas coisas”. Este momento descritivo, porém, volta a ser fugaz, uma vez que o poema envereda novamente pela especulação na pergunta que encerra a segunda parte: “Ou será que acham que/ vida e trapo são uma coisa só?”.
A última parte do poema tenta livrar-se deste plano meditativo, ao recuperar a descrição da batalha dos cães, que agora é mais minuciosa e assenta no carácter onomatopaico dos versos que representam o ruído feito pelos cães durante a refrega: “que arruaçam e arremetem / e rosnam”. Contudo, esta maneira de olhar para a peleja canina acaba por ceder outra vez a um olhar alegorizante e meditativo, uma maneira de, para usar os termos do poema, ver “tudo a frio”. À semelhança do que acontece com os cães, ambos os planos tentam sucessivamente roubar o poema para si. Por isso, mais do que as considerações melancólicas finais sobre a inutilidade de tudo na hora da morte, o que me agrada é a forma que o poema encontra para tentar resistir a isso, exibindo inventivamente o conflito feroz resultante de duas maneiras diferentes de olhar para dois cães à bulha.
Jorge Almeida
Jorge Almeida é licenciado em Estudos Portugueses e doutorando no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). Escreve crítica literária no Observador. Sabe de cor um poema de Cesário Verde e versos avulso de outros poetas, mesmo não se tendo esforçado para que isso acontecesse.