Epílogo
Nuno Amado
Epílogo
O som das tíbias contra as pedras.
Grandes ossos jogados pelo vento
no deserto como os últimos dados
sobre a mesa.
Alimentados, os abutres.
Mortos, por sua vez,
à falta de alimento.
Esqueletos de cavalos a rolar,
como folhas, no chão.
A matéria compacta, estaladiça,
cálcio vitrificado,
embate e quebra,
embate e fere-se na aspereza
e ao longo
da sua provação
quase que canta,
dir-se-ia que canta, mas existe
som sem ouvidos?
Lástima sem voz?
Oh, os cavalos do Mediterrâneo,
leves como vapor,
filhos das águas,
dourados como o mar
quando entardece.
Inalcançáveis criaturas mesmo
quando delas fazem montadas,
mesmo quando as conduzem
para a linha do abate.
Nem bravios nem secretos: indiferentes.
Aqueles olhos ligados pelos nervos
aos centros brutos da sobrevivência,
transportando as imagens da comida,
das fontes e da fêmea e do Inverno,
para que o movimento se prepare.
Nada mais fazem esses olhos,
não se empenham numa expressão
nem num apelo. Em nada.
Têm o fim de tudo e o princípio
na grande massa globular.
E dado que nada contemplam,
nada os atravessa.
Pois não vêem morrer. Aqueles olhos
passam pela batalha como passam
pelas ervas dos prados.
Levando ainda a ondulação, a escala
musical das marés.
Eles dançam na guerra. Com os músculos
muito treinados pela delicadeza,
tendo pedido às aves o segredo
da boa elevação como Nijinsky.
Pórticos de beleza, esses cavalos
que, feridos, não produzem
um só grito, tão concentrados,
tão incandescentes
como o que arde sozinho
e não deseja
sequer fazer-se ouvir.
Não sabem o que é a morte.
Sentem falta, por um breve momento,
daquele peso
que levavam no dorso, dos pés nus
colados ao seu ventre,
da pele mal protegida pelos saios
de couro desgastado,
o diminuto sexo a oscilar
contra as ásperas crinas.
Depois eles mesmo caem.
No seu modo correcto de cair.
Silenciosos, na poeira caem
e delicadamente a história acaba.
Ainda, por instantes, estremece,
brilha no alto alguma coisa rósea,
pérola ou baba, um resto de carniça,
como cetim,
no bico de um necrófago.
Hélia Correia, “Epílogo”, Um Bailarino na Batalha. Lisboa: Relógio d’Água, 2018.
Gosto deste poema porque é uma cena de cinema traduzida para poesia. A primeira estrofe parece indicar que tudo se passa em câmara lenta (“grandes ossos jogados pelo vento”), e diante de nós abre-se um deserto inóspito e seco em que jazem apenas “tíbias”, que o vento atirou como dados contra as pedras, e abutres. A segunda estrofe esclarece que se tratam de “esqueletos de cavalos”, e que rolam levemente, delicadamente, em câmara lenta, de facto, “como folhas no chão.” Compreendemos que estes cavalos morreram no campo de batalha, indiferentes ao seu destino, e que por isso nos aproximamos da ação já no fim.
É um poema impressionista porque provoca uma “impressão”; esta parece construir-se com base em três aspetos – visual, sonoro e cinético.
A impressão visual parece-me derivar de todas as referências a “matéria”, a uma corporalidade que encontra a morte na total ausência de metafísica ou de filosofias eufemísticas que a expliquem – há tíbias, esqueletos, “cálcio vitrificado” que se quebra, “massa globular” que não “se empenha numa expressão.” Empenhar-se em expressões é tarefa humana, depende de interpretações cognitivas que nada têm a ver com o domínio da matéria. O olhar humano olha para alguma coisa, mas estes cavalos não olham para nada, isto é, tomam o mundo apenas na sua corporalidade. Nada sabem das “coisas entre o céu e a terra” e por isso “nada os atravessa” – a sua indiferença será, porém, melhor do que a sorte dos humanos, pois estes sofrem e morrem, enquanto estes cavalos apenas morrem. O resultado é o mesmo.
A importância do olhar – do olhar indiferente dos cavalos e do olhar de quem observa os cavalos – é um aspeto essencial neste poema. Confirmem-se os pronomes demonstrativos da quinta estrofe (“esses olhos”) e os da sexta (“aqueles olhos”), que evidenciam um progressivo distanciamento do olhar, como uma câmara que se afasta para que o espetador possa contemplar toda a amplitude da cena. O poema termina, também, com uma brutal impressão visual relativa à indiferença da matéria – aquilo que, “róseo”, brilha lá no alto não passa de restos de carne morta destes cavalos do Mediterrâneo no bico de um abutre. No entanto, não deixa de ser belo, ou delicado – brilha “como cetim” e pode até confundir-se com pérolas. É, porém, o olhar humano que imprime esta beleza àquilo que é apenas corporalidade, e por isso alheio às noções subjetivas de beleza e fealdade.
O som é outro aspeto impressionista deste poema, ou a ausência dele, já que é o silêncio da morte que embate contra o leitor. É verdade que o primeiro verso menciona “o som das tíbias contra as pedras”, mas rapidamente se instaura o silêncio. Nada mais se ouve – se o cavalo de Guernica parece gritar, estes magníficos cavalos dourados “não produzem/ um só grito” na sua indiferença, mesmo quando caem na poeira e morrem. Aquilo que parece ser uma cena de guerra esclarece-se nos lindíssimos versos em que os cavalos sentem, apenas, a falta do peso dos seus cavaleiros, os primeiros a morrer e que por isso tombam, livrando os cavalos da carga (“Sentem falta, por um breve momento,/daquele peso /que levavam no dorso, dos pés nus/colados ao seu ventre”) – não há relatos de gritos ou brados bélicos ou de sofrimento, de súplicas, de tentativas de explicar ou narrar a batalha. Estes de nada serviriam; não há explicação ou motivos ulteriores ou proféticos para a morte dos cavalos. Os seus ossos rolam no deserto, jogados ao vento como dados – a sua morte é aleatória, provém de sorte ou azar, e não de um qualquer destino messiânico que se queira inventar. Assim, é novamente a indiferença da matéria que morre, sem necessidade de produzir um único som. Numa outra vida, teria existido som – afinal, os cavalos carregam ainda consigo “a escala musical das marés”, são por isso seres musicais, e não há música sem som. Mas, agora, o próprio poema duvida da existência de som, o que equivale a duvidar da própria humanidade; a “matéria” “dir-se-ia que canta”, mas o uso do futuro do pretérito do modo indicativo não permite a dúvida – na verdade, não canta. Assim, existirá “lástima sem voz”? Insinua-se que o aqui está em causa não é, verdadeiramente, a morte dos cavalos, ou pelo menos não apenas esta – é a morte do humano.
O poema tem escassíssimas referências à presença humana, mas esta paira sobre os versos como um fantasma. Uma dessas presenças fantasmagóricas é a ausência de peso no dorso do cavalo a que já se aludiu, e é esta também a perda da humanidade, tão frágil e efémera quanto a sensação de um cavalo que deixa de sentir o corpo do cavaleiro. Outra presença humana está na forma apassivante como se descreve a presença distante dos cavaleiros a montar os seus cavalos: “inalcançáveis criaturas mesmo/quando delas fazem montadas.” Não são os cavalos providos de agência – são apenas recetores passivos da ação humana, como por exemplo a guerra.
Finalmente, o poema é impressionista devido ao movimento cinematográfico que descreve. Desenrola-se à nossa frente a delicadeza leve da simetria destes cavalos, que verdadeiramente dançam na batalha, e que dos pássaros obtiveram “o segredo/da boa elevação como Nijinsky.” Novamente, refere-se a corporalidade na imagem dos músculos muito treinados, que nos surgem como elásticos e proeminentes, tal como um bailarino em palco – tal como Nijinski. Os cavalos dançam, e quando morrem, pura e simplesmente deixam de dançar e caem - conseguimos imaginar magníficos cavalos gregos (“do Mediterrâneo”, lembremos), de “terrível simetria”, caindo correta e delicadamente, em câmara lenta e impossivelmente belos. A sua morte é, em primeiro lugar, a morte do belo, destes “pórticos de beleza.” Em segundo lugar, é a morte dos homens que os montam. Assim, a cinematografia do poema, que exalta a impossível beleza dos cavalos dourados do Mediterrâneo, é no fundo o constatar da morte da humanidade, a presença invisível do poema, como vimos.
Quando os cavalos morrem, a sua carne desfaz-se, é devorada na sua delicadeza de cetim pelos abutres, e voltamos ao som de tíbias contra as pedras. Pó que ao pó regressa, nada mais do que som e fúria (e na verdade, dos cavalos, nem sequer som nem sequer fúria, com vimos – estes atributos vãos são humanos, e desaparecem com eles).
Rita Faria
Rita Faria é professora na Universidade Católica Portuguesa, não sabe fazer mais nada sem ser ler e escrever e não quer fazer mais nada sem ser ler e escrever. Fora isto, gosta de filmes de terror, vampiros, fantasmas e zombiesem geral. E considera que o português é a língua mais engraçada do mundo.