A última morada
Sara Carvalho
A última morada
Quem passa o portão de ferro
do lado esquerdo estão os teus pais
e alguns irmãos No talhão de
cima a minha avó e tu
numa sepultura simples
Aqui e ali por entre os anjos
de mármore jazem alguns
vizinhos um jovem soldado
que morreu na guerra uma criança
que não deveria estar ali Lentamente
vão-se restabelecendo cumplicidades
num mundo onde as palavras
(e a vida) são desnecessárias
Jorge Sousa Braga, “A última morada”, O Novíssimo Testamento e Outros Poemas. Lisboa: Assírio e Alvim, 2012.
Gosto deste poema pela ironia surpreendente do que surge entre parênteses, na última linha. A surpresa é subtil e, numa primeira leitura, pode fazer sorrir: num mundo de mortos, a vida é desnecessária.
Comecei pelo fim, mas agrada-me, logo nos primeiros versos, a imprecisão coloquial com que são dadas indicações sobre a localização de alguém. Se uma determinada localização é sempre relativa, neste poema as indicações estabelecem simultaneamente um mapa de relações genealógicas, também algo impreciso. Temos, assim, numa “sepultura simples”, um “tu”, cujos pais e alguns irmãos (do “tu” ou dos pais deste?) se encontram do lado esquerdo de quem passa o portão de ferro; uma avó de quem escreve (“a minha avó”), que jaz no talhão de cima; alguns vizinhos (do “tu”, de quem escreve, de ambos, ou tão-somente vizinhos de sepultura?); um jovem soldado morto na guerra; uma criança “que não deveria estar ali”, pois não há sítio mais absurdo onde uma criança possa estar do que num cemitério. “Cemitério” é, aliás, palavra que não figura no poema, tal como, no mundo particular que nele se evoca, as palavras e a vida são desnecessárias. Há, no entanto, palavras que pertencem ao campo lexical de “cemitério”, como “talhão”, “sepultura”, ou “anjos de mármore” – e, naturalmente, “última morada”.
Gosto deste poema por aquilo que nele julgo ler sobre a vida (e a literatura). Tal como, na literatura, metáforas podem nascer de metonímias, na vida, relações de cumplicidade decorrem muitas vezes da contiguidade. Interrogo-me, ao escrever isto, se há alguma espécie de cumplicidade que não nasça da proximidade. No poema, as cumplicidades vão sendo restabelecidas “lentamente”, porque, no mundo particular que aí se evoca, também a pressa é desnecessária. Agrada-me a descrição de uma última morada onde, passando-se certo portão de ferro, e na ausência de palavras, pode haver lugar e tempo para relações de cumplicidade. Penso ainda, ao ler o poema, na ideia de que a vida é algo que está entre parênteses, interposto entre uma coisa e outra coisa. Gosto, por fim, da sugestão de uma vida além da vida, onde, por assim dizer, não se está só.
Ana Cláudia Santos
Ana Cláudia Santos trabalha na Imprensa da Universidade de Lisboa, e faz outras coisas nos tempos livres. Doutorou-se e escreveu sobre Giambattista Vico, cuja autobiografia traduziu. Nunca conseguiu destruir os poemas que escreveu em criança, e continua a ter um fraco pela rima.