Contact Us

Use the form on the right to contact us.

You can edit the text in this area, and change where the contact form on the right submits to, by entering edit mode using the modes on the bottom right. 

         

123 Street Avenue, City Town, 99999

(123) 555-6789

email@address.com

 

You can set your address, phone number, email and site description in the settings tab.
Link to read me page with more information.

Poemas de agora

Filtering by Tag: Nada Falta

Nada Falta

Maria S. Mendes

 

NADA FALTA

 

Ao cair da tarde,

passa lá fora

a melancólica,

antiquíssima flauta

do amolador.

 

Vai-se afastando

e deixando atrás de si,

como uma cascata,

a toada

magoada e urgente

da noite que vem

e promete ser

varrida de água

e de vento,

fatal para vagabundos

e para espíritos aflitos

e afligidos.

 

Mas

entre os múltiplos golpes

executados por aí

com um cutelo de dois gumes

de fabrico euro-alemão,

esta tormenta,

no ritmo da flauta,

anuncia sobretudo a queixa

de mais um trabalho

em liberdade e em gosto

prestes a morrer.

 

Parece

que mais ninguém a ouve,

e,

pelo silêncio que fica,

parece até

que já não há ninguém vivo na rua.

Nem os cães…

Estarão

a ver

as inundações

na América

 

— Os cães também?

 

Claro, nem ladram.

 

A televisão

inunda-lhes a casa lá longe

e eles gostam.

Também lhes afia as facas

que trazem na cabeça

e todos gostam.

Não precisam de amolador.

Não precisam de mais nada.

 

Alberto Pimenta, "Nada Falta", Nove fabulo, o mea vox/De novo falo, a meia voz. Lisboa: Pianola, 2016.

 

Gosto deste poema porque fala da flauta do amolador — e, neste Outono, teima em não chover. No português das telenovelas brasileiras com que cresci, amolador podia designar aquele que arrelia ou aborrece: “Não enche o saco, não amola!” Um leitor de poesia não é, nesta acepção, um amolador, desde que não pretenda explicar o sentido do poema. Porque, diz o poeta, um poema não quer dizer: ele simplesmente diz. Comentar um poema, nos termos em que o faço, significa amolá-lo, molestá-lo: cansar a sua beleza, como também diz o povo irmão. Mas o leitor pode talvez ser um amolador na acepção que o poema invoca: alguém que afia o gume do poema no esmeril da sua dor, ou que conserta imaginosamente a quebra dos versos, preenchendo os espaços em branco.

Descrever alguém como amolador não significa aproximá-lo de nós, mas aumentar a distância que nos separa dele. O amolador sempre foi uma figura outonal, não porque viesse apenas com as estações frias, mas porque se dizia que a música da sua flauta era já sinal de chuva. Além de amolar facas e tesouras, consertava guarda-chuvas. No poema, o amolador não é alguém que chega e se faz ouvir, mas aquele que se afasta — “ao cair da tarde”, esclarece o verso inicial. A sua música vem de longe, de um passado ainda mais remoto do que possamos supor, talvez de um fundo mitopoético — a sua flauta é “antiquíssima” —, ao qual parece agora regressar, por fim. A flauta não faz já alarde de um préstimo: “anuncia sobretudo a queixa/ de mais um trabalho/ em liberdade e em gosto/ prestes a morrer”. O que deixa atrás de si é um pranto: “uma toada magoada e urgente” que flui “como uma cascata”. Escorre por ruas desertas, “parece até/ que já não há ninguém vivo na rua”. Ao contrário do flautista de Hamelin, este tocador não atrai qualquer criatura: nem crianças, nem ratos sequer. Tudo isto faz lembrar o canto do vendedor de peixe açoriano que Ernst Jünger descreve no final de O Coração Aventuroso: calcorreando ruelas estreitas e adormecidas — também aqui “ninguém saía de casa e nenhuma janela se abria” —, o vendedor lançava um pregão exuberante, que se convertia logo, em voz baixa, numa expressão desesperada ou numa praga de cansaço. No poema, o magnífico apelo da flauta do amolador soa como um lamento.

Nenhuma cheia, contudo, aniquilou a população: as gentes e até os cães estão fechados em casa, hipnotizados, talvez mesmo medusificados. A televisão dá-lhes outra música, que também anuncia chuva — as inundações na América, onde tudo é em grande e qualquer cheia adquire imediatamente proporções bíblicas, como, no directo do telejornal, gosta de apregoar o jornalista que nunca leu o Êxodo ou o Apocalipse. A catástrofe, todavia, não são “as inundações na América” — essa terra onde Disaster never rests!, como advertiam, em tempos não muito distantes, cartazes da Cruz Vermelha americana —, mas a enxurrada televisiva. É decerto uma inundação de água tépida, como agrada à rã que se deixa cozer alegremente em lume brando: “A televisão/ inunda-lhes a casa lá longe/ e eles gostam”. Amusing ourselves to death. A televisão é também o grande amolador: deixa o espírito embotado (isto é, sem gume), mas “afia as facas/ que trazem dentro da cabeça/ e todos gostam”. Que facas são essas? (Como se lê noutro poema deste livro: “Não vou responder/ não me apetece”.)

Daqui se infere que a tonalidade melancólica do poema não exclui uma disposição tensa. Pelo contrário: em alguns momentos, a diatribe torce o pescoço à elegia. Na terceira estrofe, o poema visa “um cutelo de dois gumes de fabrico euro-alemão”, manejado certamente por destro açougueiro, já que tem distribuído “múltiplos golpes” por aí. E um riso escarninho, que se deve sobretudo à ingerência de uma voz irrisória que o poeta há muito não ouvia, assoma em vários poemas do livro, insinuando-se pontualmente aqui: “— Os cães também?” Tem-se dito que esta reversibilidade é típica da poesia de Alberto Pimenta: o baixo que se eleva, o sublime que devém grotesco, o elegíaco que se revela ácido, o pranto que mostra incisivo dente. Talvez isto já nos fosse dado pelo título do poema, uma declaração aparentemente reconfortante: “Nada falta”. Esta expressão de plenitude designa afinal uma extinção — e talvez uma liquidação total, como anunciam as montras no fim da grande época dos saldos.

Pedro Sobrado


Pedro Sobrado. Licenciado em Ciências da Comunicação e mestre em Estudos de Teatro, prepara uma tese de doutoramento sobre Gil Vicente. É professor de literatura dramática na Universidade Lusófona do Porto. Participou como dramaturgista em espectáculos teatrais de Nuno Carinhas e de Ricardo Pais. Trabalha no departamento de Edições do Teatro Nacional São João, onde assegura a coordenação editorial de livros e outras publicações. É autor do blogue Mosca Fosforescente.