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Poemas de agora

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Oração Punk

Maria S. Mendes

 

Oração Punk

 

"Virgem, livra-nos de Putin" 

 

(coro)

Virgem Maria, livra-nos de Putin,

livra-nos de Putin, livra-nos de Putin

(fim do coro)

 

Vestes negras, dragonas douradas

Os paroquianos rastejam em reverência

O fantasma da liberdade [foi para] o céu

A parada gay enviada para a Sibéria em grilhões

 

O líder da KGB [é] o seu santo principal

Conduz os manifestantes para a prisão

Para Sua Santidade não ofender

As mulheres devem parir e amar

 

Merda, merda, merda de Deus

Merda, merda, merda de Deus

 

(coro)

Virgem Maria, Mãe de Deus, torna-te feminista,

torna-te feminista, feminista torna-te

(fim do coro)

 

A igreja reverencia líderes podres,

a procissão da cruz das limusinas pretas

Na escola, vem um pregador

vão para a aula – tragam-lhe dinheiro!

 

O patriarca Gundiai[1] acredita em Putin

Melhor que acreditasse, sacana, em Deus

O cinturão da virgem não substitui comícios

A Virgem Maria connosco está nos protestos!

 

(coro)

Virgem Maria, livra-nos de Putin,

livra-nos de Putin, livra-nos de Putin

(fim do coro)

 

Ver aqui

 

Gosto desta oração punk, apesar de não ser um grande poema ou uma grande canção (e dizem-me que há boas canções punk). A concessiva introduz uma suspeita ponderosa, que recai sobre o uso do verbo afectivo: é possível gostar de certos poemas, mas não dos colectivos activistas que os produziram?

A Oração Punk, cuja atuação se deu em Fevereiro de 2012 na Catedral do Senhor Redentor, em Moscovo, valeu a três membros do colectivo feminista Pussy Riot a acusação de vandalismo e incitação ao ódio religioso.

Em termos musicais, o coro com que o hino abre sugere uma linha melódica reminiscente dos cânticos litúrgicos ortodoxos, logo interrompida pelos versos gritados que se seguem (ler aqui) Na língua original, o jogo de repetições e aliterações é mais eficaz do que em tradução, e o ritmo abrupto dos versos rimados contrasta com a cadência do coro que se repete.

Se o coro começa por ser uma exortação iconoclasta à Virgem Maria para que liberte o povo russo de Putin, os versos que se seguem são uma crítica feroz à aliança pouco ortodoxa entre a Igreja e o Estado russos. E é este paralelismo, estabelecido no primeiro verso imediatamente a seguir ao refrão – as “vestes negras” e as “dragonas douradas” (metáforas, respectivamente, do clero e do KGB), que permite dar sentido à sucessão de imagens elípticas que se justapõem sem o benefício de uma sintaxe agregadora: os verbos ou conectores são elididos (feição que as traduções consultadas mais bem conseguidas, e mais literárias, obliteram (ler aqui).

As comparações que se sucedem são óbvias e os termos da comparação explicitados. O “santo principal” é “o líder da KGB”, ainda que o referente da segunda forma de tratamento não o seja: “Para Sua Santidade não ofender / as mulheres devem parir e amar”. A qual santo é que as mulheres não deverão ofender? A relação antitética criada logo na primeira imagem (“vestes negras” / “dragonas douradas”) permite identificar na relação de subordinação (não apenas da oração final, mas do género feminino) a outra face da moeda: se o “santo principal” (Putin) envia manifestantes para a prisão, é o Patriarca Kirill (sinédoque da Igreja colaboracionista) que subordina as mulheres à sua função doméstica - e domesticada.

A referência à cerimónia do período quaresmal, a “procissão das cruzes”, na terceira estrofe, surge aposta às “limusinas pretas”. A imagem de uma procissão de carros de luxo importados tem, até para quem não se passeou pelas ruas da capital russa, um referente inequívoco, e às máfias ou magnatas que tomaram de assalto o leviatânico Estado pós-perestroika contrapõe-se o mantra: “Mãe de Deus, livra-nos de Putin!”

Mas uma banda punk feminista que urge/exorta a Virgem Maria a tornar-se feminista, que emprega um refrão “Merda de Deus, merda de Deus” para exortar a Igreja Ortodoxa a abandonar a aliança corrupta com o poder secular, erigida nos escombros do antigo império soviético, não poderia ser alusiva, subtil e mole. Os manifestos artísticos e políticos (punk) buscam outros efeitos.

Uma leitura atenta deste poema não poderá descobrir nas suas palavras violentas e obscenas, nem nas suas imagens gráficas, o protesto “tristemente protestante” de uma Akmatova ou de um Mandelstam, e de outros poetas dissidentes, que escreveram numa tradição literária que continua a ter na Rússia do século XXI um terreno inesperadamente fértil.

A Oração Punk não perdurará pela concisão com que numas poucas sílabas se afirma o “ofício sagrado” do poeta de que fala Akhmatova, nem o poder da memória na transmissão da palavra (os poemas escritos no gulag foram em muitos casos escrevinhados somente na memória dos seus autores e dos seus ouvintes). Não é uma oração-poema, apesar da sua litania iconoclasta, apesar do cenário onde o acto político deveria ser encenado: às portas do altar, local reservado aos sacerdotes.

Mas a performance desta oração de combate na Catedral de Moscovo, com a duração de pouco mais de 40 segundos, é um acontecimento, num sentido óbvio, mas também num sentido menos óbvio, ou até mais literário. Auden famosamente negou que a poesia pudesse fazer alguma coisa acontecer. Porém, quisesse ele resgatar Yeats (a quem o verso é dedicado), e a própria poesia, do tribunal dos defensores da arte como agente de transformação política e social, dificilmente poderíamos ver o elogio de Auden a Yeats como a afirmação da incapacidade do poeta (i.e. Yeats) em transformar a sociedade ou em acrescentar objectos (poemas) à história natural do homem. O poema não faz nada acontecer, logo é nada. Só que o verso prossegue e diz algo inconsistente com a afirmação da radical incapacidade performativa da palavra poética: a poesia sobrevive. E o último verso, ao afirmar a temporalidade da poesia, afirma a sua intemporalidade: it survives, a way of happening, a mouth.

A poesia e a música não provocam acções; um poema não faz um governo cair, não reforma instituições, não proporciona a liberdade nem a torna um bem tangível. Mas um poema é em si um acontecimento, desde que uma boca o diga, desde que o outro o diga, pense, e, porque não?, o grite e comunique. E, enquanto tal acontecer, ele continuará a acontecer.

Poderemos pensar que o grito de revolta das Pussy Riot não sobreviverá à Rússia pós-Putin. Tal como poderemos afirmar que os poemas revolucionários de Maiakovski não perdurariam na Rússia pós-Lenine. Mas tal seria ignorar a óbvia diferença entre escrever poemas na Rússia e escrever poemas ao abrigo de bolsas de criação literária. Seria também ignorar a diferença entre reagir a um poema como uma sucessão de palavras e reagir a um poema-manifesto lendo as suas palavras obscenamente explícitas numa série de outros poemas e de coisas de vária sorte.

[1] Referência pouco velada ao Patriarca, ao apelido de Kirill Gundaev. 

Ana Matoso


Ana Matoso dedica-se agora ao ensino e à tradução. Os primeiros poemas que a marcaram foram traduções dos anos 50 dos poetas românticos ingleses, franceses e alemães. A sua divisa tornou-se, impenitentemente, “quanto mais poético mais verdadeiro”. Passou ao mesmo tempo por uma febre de Sophia de Mello Breyner Andresen, seguida da de Fernando Pessoa e Rilke. Ficou assombrada pelo que Philip Larkin designou de “a Ford-car view of literature”, e desconfia por princípio de manuais de instrução literária. Abandonou o culto da poesia, e começou a interessar-se por outras coisas da vida. Gostava muito de ler um novo livro de António Franco Alexandre.