Snack-bar
Maria S. Mendes
Snack-bar
Batem fotografias ao balcão
e a miúda da novela
por ter o filho
o bar a fechar
e a miúda por ter a criança
há uma máquina de imagens
linguagem aligeirada
que trata destas coisas
e não falha nunca
ou um livro sobre a mesa
aberto na página seguinte
à do café de ontem
também isto nunca falha
o tempo é todo
e o vento fecha-nos entre paredes
os barcos não saem
ninguém na lota
pomo-nos a imaginar
saídas para o amor
o tempo é todo
e a vida por acabar
e qualquer coisa ali à direita do verbo
e não sabemos colocá-la onde?
pomo-nos a olhar uns nos outros
e sorrimos
e terrível deter a miúda
que gosta do beijo no banco de trás
ela o diz
e que o tempo é todo
e que nada falha
e que a pose ao balcão
é uma saída para o amor
ou uma imagem
apenas uma boa imagem
e voltamos ao livro
e tanta coisa
tanta coisa mais por jogar
num pedaço de papel
e qualquer coisa na mesa do lado
e não o sabemos.
Hugo Milhanas Machado, “Snack-bar”, Clave do Mundo. Lisboa: Sombra do Amor Edições, 2007.
@ Hugo Milhanas Machado. Aqui publicado com autorização do autor.
Gosto deste poema porque encontro nele uma distracção atenta, que adensa um impasse entre interrupção e sucessão, através de imagens instantâneas que um olhar curioso vai recolhendo e sobrepondo.
Um snack-bar acolhe pessoas que se refugiam do vento numa zona piscatória e o olhar curioso do poeta entretém-sea “imaginar/ saídas para o amor”, retendo vários instantes do cenário onde se encontra e adiando o momento em que se fixará em algum deles – as fotografias que se tiram ao balcão, o bar a fechar, a miúda da novela que passa na televisão, o livro por ler sobre a mesa, a hesitação da escrita, o olhar uns nos outros, a vida desconhecida na mesa do lado. Creio que esta estratégia permite, simultaneamente, desdobrar o espaço da cena que encerra o texto e reverberar o tempo suspenso deste episódio.
Este duplo efeito de tempo (cronológico e meteorológico), que parece interromper o funcionamento da vida (“o tempo é todo/ e a vida por acabar”), enclausurando-a no espaço (“o tempo é todo/ e o vento fecha-nos entre paredes”), é confrontado com outros expedientes que, segundo o poeta, nunca falham, talvez por franquearem o acesso a novas realidades: “a[s] máquina[s] de imagens” (fotográfica e televisiva) e “o livro aberto sobre a mesa”. No entanto, nenhuma destas “saídas” sucessivas, que incluem imagens (“e que a pose ao balcão/ é uma saída para o amor/ ou uma imagem/apenas uma boa imagem”) e coisas (“e voltamos ao livro/ e tanta coisa/ tanta coisa mais por jogar/ num pedaço de papel/ e qualquer coisa na mesa do lado”), atrai a exclusividade do olhar demorado do poeta, gravitando entre todas elas, consciente do desconhecido que cada uma oferece (“e qualquer coisa na mesa do lado/ e não o sabemos”).
Apesar de o discurso do poeta decorrer na primeira pessoa do plural – a única voz do grupo que o vento encerra no snack-bar – existe uma tentativa de singularização de outro protagonista, através de duas referências a uma “miúda” (“a miúda da novela/ por ter o filho”; “é terrível deter a miúda/ que gosta do beijo no banco de trás/ ela o diz”). Ela surge como uma fugaz expressão de desejo no feminino, resgatada da “máquina de imagens” para o texto, que o poeta vai construindo ao ritmo do impasse: “e qualquer coisa ali à direita do verbo/ e não sabemos colocá-la onde?”
Sara Campino
Sara Campino divide-se entre o trabalho em arquitectura e a investigação em literatura. Descobriu a sua paixão pela poesia quando reparou que guardava certos poemas na memória à espera de conseguir compreendê-los.