Exercício
Maria S. Mendes
Quem se tenha aventurado, nestes dias de quarentena, fora das paredes prisionais da sua casa, alcançando os lugares amenos dos parques e da beira-rio em que a cidade abranda o seu abraço de pedra, para concessões, fúteis mas agradáveis, ao corpo nu da natureza, terá observado, pasmado e alegre, que eles estavam mais cheios do que nunca de uma população peculiar de cidadãos em funções de exercício: runners, footers, ciclistas, skaters... nunca se viu tanta concentração de adeptos do fitness nas ruas de Lisboa (e das outras cidades do mundo em que esta forma de sair não fosse cruelmente negada pelo aperto do contágio).
Experiência singular, esta de andar por uma cidade esvaziada de carros e actividades, de todo o humano formigar do trabalho e da inconclusiva flânerie do bicho urbano, cidade bela adormecida no silêncio irreal da recolha, para descobrir nela o rebuliço dinâmico de dezenas de corpos em acção.
Nem trabalho nem otium, o exercício físico coloca-se numa janela completamente diferente de relacionamento do ser humano com o mundo. Não é nem produção, nem acção, nem interacção comunicativa (nem poiesis, nem praxis, nem lexis). Subtrai-se ao imperativo produtivo do trabalho e à gratuidade absoluta da contemplação, assim como aos vínculos sociais da comunicação, para se colocar no patamar de uma improdutividade altamente performativa, em que a ausência de obrigações se declina numa exigência de resultado tão variável (completamente individualizada) quão concreta.
Esta pluralidade é bem evidente ao cidadão em exercício que nestes dias de solidão domiciliária se junta ao bando operoso de discípulos do bem-estar resultante da actividade física e observa as formas diferentes de traduzir em liturgia pessoal o credo universal de que o movimento é o ingrediente básico da saúde física e mental.
Há, numerosos, os catecúmenos: os convertidos em formação, que a inércia assustadora do confinamento puxou para fora de casa para fugir à inanição da reclusão e à ameaça da vulnerabilidade física acrescida pela “falta de exercício”. Afinal, em tempos de pandemia, todos são obrigados a objectivar o próprio ranking de risco, a própria fatia estatística de sofrimento, doença e mortalidade, e a materializar as próprias “culpas” na origem de uma colocação desfavorável em termos de hábitos pessoais. Corrigir os erros pode restaurar a inocência, diminuir a vulnerabilidade, melhorar o ranking. O catecúmeno do exercício manifesta a fadiga penitencial do recém-chegado, que ainda está a purificar-se dos maus hábitos passados. Transpira, desacelera, mas, sacrificialmente, não desiste. O dever sustenta-o. O prazer falha-lhe. A necessidade de se cansar para se aguentar é uma contradição do universo físico que não tem explicação no seu mundo amável de pequenos prazeres alimentares e de conforto doméstico, de horror ao frio e ao calor, à dor de pés e às cãibras. A dureza agonística do exercício choca com a mansidão da sua bonomia existencial, mas a idade não perdoa, os triglicéridos também não, e o vírus é mau, não há maneira de se fazer as pazes com ele. O catecúmeno do exercício corre resignado, ou anda diligente, tão concentrado em encontrar uma sombra de gosto que não dá conta de nada do que o rodeia.
Menos numerosos, como é fado consubstancial das elites, são os órfãos dos ginásios, que o encerramento dos estabelecimentos institucionais deitou na rua do exercício pré-tecnológico da corrida. Sofrem, claramente, da monotonia não especialista de um exercício que não constrói, um a um, segundo o sábio desígnio da estética dos balneários, todos os músculos de corpos esculpidos pelo treino, obras de arte em que o bem-estar se sublimou em bonito-aparecer, a forma física escalou em glória corpórea. Consola-os, apenas, a abundância do novo público. Afinal, parques e ruas beira-rio tornaram-se uma espécie de ginásio ao ar livre, com multidões de espetadores que podem admirar os resultados do empenho diligente de anos de trabalho em bicípites e carapaça. Ventres lisos e curvas perfeitas devem ficar bem visíveis: as camisolas têm cortes estratégicos enquanto as pernas toleram só tecidos elásticos, que permitem aderências eloquentes. A componente voyeurística explicitamente solicitada reforça a cordialidade comunicativa desta tribo, que não admite uma consumação solipsística do exercício, mas faz dele experiência partilhada de celebração ritual. Há uma liturgia corpórea que requer partilha e união de admiração e é pena que a massa não adira à chamada, deixando passar na indiferença estes corpos votados aos louros dos louvores, relegando-os a uma comunhão minoritária de entendidos.
O exibicionismo benignamente socializador dos órfãos do body-building ginasial não pode ser equivocado com a solidão programática dos nerds do exercício, os que estão programados para o crescimento performativo das próprias prestações, numa coerência implacável de cálculo meios-resultados que não deixa espaço à presença dos outros. A superlotação dos espaços exteriores, das ciclovias e das pistas de jogging, a que o confinamento tem dado azo, perturba visivelmente estes profissionais, que, em bicicletas ou a correr, medem os outros como obstáculos ao ritmo, à fluidez, à concentração necessária ao alcance do objectivo motor. Este grupo mexe-se na multidão caótica dos cidadãos com o desdém franzido dos profissionais cercados por diletantes. Tocam demonstrativamente a campainha da bicicleta quando ultrapassam o transeunte na ciclovia que distraído não respeita a faixa e pisa as bolinhas de separação, descem um instante do passeio para avançar sem abrandar, quando um catecúmeno ocupa com a própria lentidão o corredor estreito da velocidade. O diletante do exercício nunca tem tempo de as contemplar a sério, estas máquinas por medida que passam frenéticas como comboios de alta velocidade, lembrando eras de normalidade em que a aceleração era o ritmo da sociedade. O vírus não os apanha com certeza, de tão rápidos que são. A gente normal também não.
Afinal, a maioria é mesmo normal, graças a Deus, e não falta quem não desperdice em solidão uma hora de exercício: há grupos de amigos, ou familiares, que correm rindo e falando em voz alta: eh pá, os tempos são maus, mas aqui estamos nós. Não podendo encontrar-nos em casa, ou no restaurante, a corrida será a nossa sala de estar. A indisciplina própria destes núcleos de resistentes da companhia, que formam pequenos clusters desordenados, incapazes de respeitar prioridades, filas indianas e direções, é perdoada pelos outros, porque ajuda à boa disposição geral. Pedaços de conversas e risos perdem-se no ar como uma nuvem rosa que os acompanha. Deus os abençoe. Há amanhã na alegria da gente.
Não há amanhã, mas certeza do hoje, na vitalidade desenfreada e inconsciente dos cães. Acompanhados, libertadores, pelos seus donos, que saem para os beneficiar do movimento sem o qual o animal não sobrevive, os cães são excitados pela surpresa das horas de ar suplementares que o confinamento forçado dos humanos lhes concedeu. Nunca se viram cães tão animados, nos passeios e nos relvados, agradecidos por uma cumplicidade reforçada por parte dos humanos que os preenche de um frenesim amistoso de criança amada. Há quem corra com o seu cão, numa competição em que sabe não ter vitória, mas que tem o sabor do jogo. Afinal, o cão e a criança não sabem nada de bem-estar, mas unicamente de divertimento, e este, como o vírus, é contagioso.
Crianças, de facto, vêem-se, não a fazer exercício, mas a jogar nos relvados, com a graça de uma intuição originária que a idade quebra e nunca mais pode ser recuperada. Quem passa, olha para elas com a imensa nostalgia de quem perdeu o que tinha sem dar conta, e daria muito daquilo que viveu para voltar só por um dia à estúpida inocência de não ligar ao futuro.
Mas não vale a pena cismar. O eu pandémico, que saiu das paredes da própria habitação para interpor entre si e o vírus o muro do exercício, atestação de saúde e vitalidade a que se agarrar como uma promessa, continua a andar, correr ou pedalar, diligente e cumpridor, acelerando a pulsação cardíaca. Cedo faz-se noite. É hora de voltar para casa, recolher-se.
Teresa Bartolomei
Teresa Bartolomei: Italiana, casou com um português por causa de Alemanha maior, o que a levou ao limite “onde a terra se acaba e o mar começa”. Gostando de limites porque dão forma, procura testá-los nos textos em que a palavra não é meio mas fim, dentro do qual o ruído se acaba e o sentido começa.