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Entrevistas

Entrevista a Michael Longley

Nuno Amado

 
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Entrevista a Michael Longley

Cambridge, 23 de Março de 2018

 

Encontrámo-nos com Michael Longley no Magdalene College (Universidade de Cambridge), à hora de almoço. Longley tinha feito uma leitura de poesia no dia anterior, durante a qual conseguiu que “toda a gente ficasse com os pêlos dos braços em pé”, o que, como se verá, é um critério fundamental para julgar poesia. Durante o almoço, falámos sobre orquídeas, longas caminhadas para avistar lontras, poemas sobre animais, padrões, kilts, Carrigskeewaun e a diferença entre uma tradução e um poema.

 

JF: Gosta de poesia?

Se gosto?

 

JF: Assumimos constantemente que as pessoas gostam do que fazem, mas esse pode nem sempre ser o caso.

Bem, eu vivo para um poema. E acho extraordinariamente excitante quando descubro um poema de alguém de quem nunca tinha ouvido falar. Parece-me, de facto, que um bom poema é um acontecimento muito raro. Há uma espécie de tsunami de poesia medíocre que corre o risco de sufocar a coisa verdadeira. Mas acho que é muitíssimo importante pensar nos grandes poetas do passado, sem descurar os jovens poetas de hoje.

 

JF: Há algum poeta jovem…?

Sim, há uma poetisa jovem em Belfast chamada Leontia Flynn.

 

JF: Oh sim, já a li.

Eu acho-a óptima. Há uma mulher do Norte de Inglaterra que escreve em dialecto, chamada Liz Berry. Eu estive no festival de poesia de Winchester há uns anos e gostei de algumas das suas leituras. Quando ela leu… eu senti os pêlos do meu braço a eriçar e essa é a única coisa que importa.

 

JF: Muitas vezes, as pessoas falam das suas referências clássicas, mas há outras referências nos seus poemas. Menciona Pavese, por exemplo.

Bem, sim, há um poema chamado “Etruria” (passa-se na Toscana). Por qualquer coincidência estranha, eu estava a ler um livro de poemas italianos, traduzidos, e descobri poemas que o Pavese tinha escrito em Inglês, por isso foi mesmo só uma coincidência, eu não leio muito Pavese. Há um poeta do final do século XIX, início do XX, chamado Pascoli, um poeta pastoril… as pessoas são muito brutas relativamente a ele; dizem que é antiquado, mas eu acho-o maravilhoso. Não escrevo segundo qualquer tipo de padrão. A poesia é uma série de acidentes. Eu estava a falar com uma académica grega muito boa e senti-me muito lisonjeado por ela ter gostado das minhas versões de Homero. Ela referiu-se-lhes como traduções. As traduções não me interessam, disse-lhe, o que me interessa são poemas.

 

JF: Ontem, na sua leitura, fez precisamente esse comentário. Poderia explicar melhor?

Bem, um poema é uma resposta a uma experiência. Quando estou a ler a Odisseia ou a Ilíada (que para mim é o nosso maior poema sobre a guerra e a morte) chego a uma passagem que me comove deveras e esse encontro é uma experiência que inspira um poema (e não uma mera tradução). Ontem, ao ler poemas de quando tinha vinte anos, aquelas versões da Odisseia quase ao estilo de James Joyce, senti-me esmagado. Pensei “Meu Deus, são muito bons”: “Your faces favourite landmarks always / Your bodies comprising the long way home”. Hoje em dia, não há muitas pessoas de vinte anos que escrevam assim! [Risos]

 

JF: Não. [Risos]

Eu não deveria dizer isso, pois não?

 

JF: Eu posso retirar, se quiser. [Risos]. As pessoas costumam perguntar-lhe sobre Homero e a Ilíada, mas há muitas outras referências nos seus poemas: a flores e a animais, por exemplo.

Bem, foi um privilégio, e uma sorte, ter entre os meus amigos um ornitólogo muito bom. É o melhor ornitólogo irlandês; chama-se David Cabot e é em casa dele que ficamos. Temos ido lá desde 1970. Ele escreve para a Natural History Series da Collins, e o seu livro mais recente chama-se The Burren; ele escreveu outro chamado Ireland. Além do David, houve um botânico bastante excêntrico chamado Raymond Piper: foi um botânico autodidacta e viajou milhares de quilómetros pela Irlanda, ao longo das décadas, em busca de orquídeas irlandesas. Foi um privilégio tê-lo acompanhado em algumas dessas viagens, éramos bons amigos. Uma semana no campo com o David Cabot ou o Raymond Piper era tão boa como seis meses ou mais numa biblioteca. Sou um bom ouvinte e um bom ladrão.

 

JF: Também gosto de orquídeas, o que talvez explique por que prestei atenção aos seus poemas sobre elas.

O meu último poema chama-se “Wild Orchids”, vou enviar-lho.

 

JF: Faça-o, por favor.

É uma lista de orquídeas selvagens e dos sítios onde as encontrei. Vi orquídeas muito bonitas em Mayo e em Clare, depois na Toscana e na Grécia. Encontrar flores é mais importante para mim do que o poema que daí resulta. A maioria das pessoas não repara nas orquídeas; não sabem o que estão a perder. Lembro-me, mesmo em miúdo, de querer saber os nomes das flores, das flores de jardim, apesar de as flores selvagens serem aquelas de que gosto realmente. Lembro-me de uns amigos nos visitarem em Mayo, na casa de campo, e de perguntarem onde estavam as flores. Estavam rodeados de flores! Acho que estavam à espera de gladíolos.

 

JF: Ou de rosas, toda a gente gosta de rosas.

[Risos] Sim, ou de rosas. Mas são as flores selvagens que me emocionam.

 

JF. E animais? Os seus poemas sobre lontras, mas também sobre raposas?

Bem, quantas pessoas no mundo já viram uma lontra?

 

JF: Bem, eu nunca vi.

O sítio para onde vamos é a região das lontras, mas há três anos que não vejo nenhuma. Porém, podemos ouvi-las. Fazem um barulho sibilante. Enfim, Deus tem nota máxima pelo desenho de uma lontra, não tem? Lembro-me de um pintor chamado Jeffrey Morgan. Ele queria pintar o meu retrato, por isso ficou connosco na costa, em Carrigskeewaun. Fomos passear ao longo da areia branca. (Pode ver-se bem, numa grande fotografia de satélite da Irlanda: consegue ver-se a forma, como uma unha). Fomos passear pela areia e eu disse: “Jeff, olha!” E avistámos golfinhos que vinham à superfície, na baía. Disse-lhe: “Se estiveres disposto a caminhar até ao fim da praia, sentamo-nos numa rocha e, se estiveres preparado para esperar uma hora ou duas, tenho a certeza de que veremos uma lontra.” Por isso andámos, havia areia e havia vento, foi muito cansativo, e sentámo-nos numa destas rochas muito desconfortáveis. Sentámo-nos em silêncio e, daí a dez minutos, apareceu uma lontra fêmea. Ela ficou tão perto de nós como você está de mim. Acho que deve ter ouvido os nossos corações a bater. Pum, pum, pum. Seja como for, ela demorou-se (conseguíamos ver a água do mar a pingar-lhe dos bigodes) e depois foi embora. Quando nos levantámos para nos esticarmos, vimos uma família de cisnes brancos voar em círculos por cima de nós, no seu caminho da Islândia para Carrigskeewaun. O Jeff foi muito engraçado; ele disse: “O que se segue?” [Risos] Eu fiquei muitíssimo satisfeito por ele ter estado ali, porque se eu tivesse contado aquela história...

 

JF: Ninguém teria acreditado em si. [Risos]

Ninguém teria acreditado em mim. Um dos meus filhos perguntou-me o que eu gostaria de ser na próxima vida, e os dois animais que escolhi foram a lontra e o texugo. Eu adoro texugos e sofro com a perseguição aos texugos e digo aos meus amigos agricultores que as ovelhas e o gado pegam tuberculose aos texugos, e não o contrário. Os esquilos também são maravilhosos.

 

The weasel and ferret, the stoat and fox

Move hand in glove across the equinox.

I can tell how softly their footsteps go -

Their footsteps borrow silence from the snow.

 

JF: Que bonito.

É do meu primeiro livro.

 

JF: Eu sei. [Risos]

Fui operado às cataratas. Só me deram anestesia local e repetia esse poema para mim próprio.

 

I see as through a skylight in my brain

The mole strew its buildings in the rain,

The swallows turn above their broken homes

And all my acres in delirium.

 

Straightjacketed by cold and numskulled

Now sleep the well-adjusted and the skilled -

The bat folds its wing like a winter leaf,

The squirrel in its hollow holds aloof.

 

The weasel and ferret, the stoat and fox

Move hand in glove across the equinox.

I can tell how softly their footsteps go -

Their footsteps borrow silence from the snow.

 

Escrevi isto quando tinha 24 anos.

 

JF: Parece saber poemas de cor.

Alguns.

 

JF: Só alguns?

Sei-os de cor de maneira que, se alguém os lesse e se enganasse, eu perceberia.

 

JF: E sabe poemas de outras pessoas de cor?

Sim. Um bocadinho aqui outro ali. Um bocadinho de um poema de Heaney, “Mossbawn Sunlight”:

 

And here is love
like a tinsmith's scoop
sunk past its gleam
in the meal-bin.

 

Também sei algum Derek Mahon. Há um poema dedicado a Edna e a mim, no primeiro livro dele, chamado “An Unborn. Child”: “I have already come to the verge of / Departure; a month or so and I shall be vacating this familiar room. (…) I begin to put on the manners of the world / Sensing the splitting light above / My head, where in silence I lie curled”. E assim por diante. 

 

JF: Também tem muitos poemas sobre poesia.

Um dos meus poetas favoritos, quando tinha a sua idade, era Wallace Stevens. A maioria dos poemas dele são sobre poesia, sobre escrever poesia. Agora isso parece-me um bocadinho limitador, sabe. Acho que a poesia deve ser sobre tudo o que acontece a si e a mim. A minha filha, que é pintora, pinta tudo. Eu gostaria de ser como Courbet: ele pintava paisagens marítimas e terrestres, nus, retratos, naturezas mortas, animais, qualquer coisa.

 

JF: Nas entrevistas, perguntam-lhe muitas vezes acerca dos seus poemas sobre a Irlanda, mas, quem lê a sua obra completa percebe a importância que têm outros temas, como os poemas sobre a natureza.

Acho que os poetas da minha geração, na altura do Conflito, cerca de 1969, eram pressionados. Falei sobre isso na palestra que dei quando recebi o PEN Pinter prize. A poesia da última atrocidade. Detesto isso. Houve uma grande quantidade de poesia voyeurista que desprezámos como Lixo do Conflito. Levámos o nosso tempo e os poemas sobre a situação política acabaram por chegar. Foi-me possível escrever alguns dos meus poemas sobre o Conflito de forma refractária, através de uma lente. Em 1994 houve rumores de que haveria um cessar-fogo por parte do IRA. Pensei que talvez pudesse contribuir para o processo de paz traduzindo um episódio da Ilíada, em que o velho rei Príamo visita a tenda de Aquiles e implora pelo corpo de Heitor, que Aquiles matara em combate. Comprimi umas duas centenas de versos num soneto sobre o cessar-fogo. É provavelmente o meu melhor poema e, no entanto, estou a ficar um bocado farto dele. [Risos]

Ontem à noite li um poema do Conflito, chamado “The Butchers”. Havia um grupo de protestantes psicóticos que percorreram Belfast torturando e assassinando católicos inocentes. Pareceu-me que podia comentar o acontecimento através da Odisseia, quando Ulisses assassina os pretendentes e as servas desleais. É um episódio esmagador. Estávamos na casa de Mayo e eu tinha levado uma caixa de cartão com livros de Homero. Comecei pelas sete da tarde e continuei durante doze horas. Estava a tremer, sabe? Acontecera algo estranho e assustador. Eu acordei a Edna, que estava a dormir, e li-lhe “The Butchers”. Ela disse-me logo que era um poema extraordinário. Foi um dos momentos mais significativos da minha vida.

 

JF: E os outros poemas, em que escolhe falar da vida em si, mas também de sítios como Carrigskeewaun?

Carrigskeewaun é tão bonito, é muito remoto e temo-lo só para nós. Somos nós, as aves de rapina e as lindas flores selvagens. Somos abençoados, sabe? Apaixonei-me pelo sítio quando o vi pela primeira vez. Sempre que saio julgo que não haverá mais poemas sobre Carrigskeewaun, mas há sempre dois ou três.

 

JF: Também tem poemas sobre roupa, um padrão de vestido de noiva ou um kilt.

O meu lado feminino interessa-me. A minha anima. O artesanato que as mulheres produzem interessa-me muitíssimo. Sabe quando as mulheres se juntam para fazer colchas, como parte da vida do dia-a-dia; a altura do dia para comer e conversar. Ora, quando vemos as suas colchas penduradas na parede, apercebemo-nos de que são obras de arte. Nem sequer sabemos os nomes das pessoas que as fizeram. Isso fascina-me há anos. Sinto um grande respeito por actividades dessa natureza.

 

JF: Esses padrões são como aqueles que aparecem num poema? Há alguma coisa de que não goste, na poesia?

Sim. Não gosto de coisas confessionais que… Eu costumava brincar com os meus alunos dizendo que se a maior parte das pessoas que se autointitula poeta fosse equilibrista estaria morta. Não gosto de coisas sem forma. Não gosto dos poetas de Cambridge, Prynne e assim por diante, que descuraram completamente o público. São tão obscuros. Há muita coisa de que não gosto, mas prefiro falar sobre aquilo de que gosto.

 

JF: As pessoas falam dos seus poemas de quatro versos, mas também dos seus dísticos.

[Risos] Não poderiam ser muito mais curtos. Há um chamado “The weather in Japan.”

 

The Weather in Japan

 

Makes bead curtains of the rain,
Of the mist a paper screen.

 

Está escrito segundo a crença de que um haiku tem muitas palavras! O título do livro vem desse poema pequenino, como um modo de dizer que dois versos, quatro versos, é tamanho suficiente. Muitas pessoas que se autointitulam poetas não escreveram sequer dois versos. Eu escrevi um poema com um verso: “My lost lamb lovelier than all the wool”. O meu próximo livro (Escrevi cerca de um quinto) tem como título provisório The Candlelight Master. Havia um pintor conhecido pelo mestre da luz de velas. Esse poema tem quatro versos “I am the Candlelight Master /  Striking a match in the shadows. / A smoky wick, and then radiance. / I am the candlelight master.”

 

JF: A pintura parece ser importante para si.

Adoro. Tenho um poema novo chamado “Matisse”. Venero a pintura francesa. A minha filha Sarah é uma artista maravilhosa. Temos muita empatia e conversamos muito sobre pintura. Mais uma vez, estou interessado em pintoras mulheres, como Gwen John, Winifred Nicholson.

 

JF: E música?

Vivo para a música. Oiço música todos os dias. Sou muito antiquado. Gosto de Bach e de Schubert, mas também de Chopin, Schumann, e de muitos compositores do século XX. Oiço com atenção cerca de uma hora por dia, para limpar a mente, principalmente música erudita e jazz. O jazz nasceu da escravatura, da degradação, da exploração e da miséria e, no entanto, iluminou o mundo inteiro. Esse é o maior dom artístico. Louis Armstrong e o jazz de Nova Orleães, os músicos brancos do jazz de Chicago. Tenho ouvido esse barulho glorioso desde os vinte anos. Simplesmente adoro-o.

 

JF: Ouve música enquanto escreve?

É possível, mas em geral desligo-a. A minha cantora preferida é Billie Holiday. Ela domina o meu cérebro.

 

JF: E as letras? Pensa nelas quando está a escrever? Cantou-me a “Maria” [Leonard Bernstein e Stephen Sondheim, West Side Story] há bocado.

Não, nem por isso. Só o fiz para que se sentisse à vontade. [Risos]. As letras são interessantes, não são? Pense numa canção como “Tea for two”. A letra é banal. A música é banal, mas as duas juntas tornam-se imortais – é muito estranho. Um bom poema não deixa espaço para a música, na verdade, porque a música está na letra. Para que uma canção seja boa, tem de haver espaço entre a letra e a música. Conhece Rodgers e Hart? Eles escreveram uma canção muito, muito boa, e perguntaram-lhes o que surgiu primeiro, a letra ou a música, e Franz Hart respondeu “o contrato”. [Risos]

 

JF: Ajudou a fundar o Seamus Heaney Centre for Poetry.

Trabalhei para o Arts Council durante muitos anos e estabeleci parcerias, lugares para escritores residentes. Aquilo que pretendia era algo como o Heaney Centre. Diria que, para mim, o Heaney Centre representa muito daquilo em que acredito. Espero que sobreviva à burocracia da Universidade. Em parte foi moldado pela minha mulher, em conversa com o Seamus, e eles sublinharam a importância do aspecto crítico. Julgo que a melhor crítica é a continuação da obra de arte.

 

JF: E o seu crítico favorito é:

Edna Longley claro! O detector de tretas dela está sempre afinado. Ela sabe reconhecer um bom poema quando o vê. O que seria de mim sem ela?