Entrevista a Chus Pato
joana meirim
Entrevista a Chus Pato
Vigo, 5 de Maio de 2018
Chus Pato veio de Lalín, onde vive, até Vigo num domingo soalheiro para falar com os Jogos Florais. Escolhemos o terraço do Hotel América para a nossa conversa sobre vários assuntos, entre os quais, sobre as manhãs a ler Montale, sobre como se sente desconfortável quando lhe falam em espanhol de passagem por Caminha e sobre como foi a sua aventura inesperada em Harvard. No final ofereceu-nos um inédito, um poema que resultou de um sonho que teve de estar perdida num bosque.
JF: Gosta de poesia?
Sim, sim, gosto de poesia, eu diria que é uma das maiores paixões da minha vida.
JF: Enquanto poetisa ou como leitora?
Eu digo isto como leitora. Leio poesia todos os dias, não há um único dia em que não leia poesia. É mesmo muito raro que não leia poesia. Tem de acontecer algo muito forte para que não a leia. E de alguma maneira é uma felicidade, é o que eu entendo como felicidade, que tem que ver com a minha liberdade.
JF: E para que serve a poesia?
Acho que serve para muitas coisas. Em primeiro lugar, diria que a poesia serve para celebrar o facto de sermos capazes de falar. Eu considero-me um indivíduo que pertence à espécie sapiens, e a espécie sapiens define-se por muitas coisas, entre elas uma importante é a linguagem. Considero que a poesia é a celebração do facto de sermos capazes de falar, e sermos capazes de falar pressupõe o maior perigo, não é? Mas também pressupõe a capacidade de pensar, de armazenar informação, de jogar com a linguagem, de conceber o mundo, de abrir um país em qualquer ponto do trajecto onde estejamos. Isso para mim é importante. Essa não é a única coisa para que serve a poesia. Julgo que sem poesia a nossa capacidade linguística ficaria reduzida a uma fala instrumental, à repetição de contra-senhas criadas para dirigir-nos, criadas para fazer-nos obedecer, sendo essas contra-senhas a única possibilidade de mundo. Entendo a poesia como o contrário disto, como aquela linguagem que é capaz de desprender-se da língua instrumental e de abrir outros mundos.
JF: Usa a poesia no dia-a-dia? Lembra-se de versos de cor?
O meu dia-a-dia, como o de quase toda a gente, é muito agitado. A poesia não tem muito espaço. Por isso, leio poesia pela manhã, eu trabalho à tarde, então leio de manhã. E é um espaço que para mim é inviolável. Nesse momento eu estou com a poesia e leio poesia, e depois então o dia acontece. O certo é que ao longo do dia há momentos, ou há dias ou circunstâncias em que escrevo poesia; então, isso é outra questão. Isso faz parte não da leitura, mas sim da escrita, que é outro aspecto.
JF: Entrou recentemente na Real Academia Galega. É importante haver mais mulheres na Academia? É uma preocupação sua?
É sem dúvida uma preocupação minha e de muita mais gente. Há uma questão que gostaria de salientar: há que esclarecer o termo “mulher” ou “mulheres”. Porque não me interessa que entrem mulheres em geral na Academia, mas sim que entrem mulheres que, para além de serem mulheres, tenham uma razão para nela ingressarem. Nas instituições em geral há muitos homens que poderiam ser substituídos por mulheres; esta afirmação significa que essas mulheres que foram excluídas por serem mulheres eram tão válidas ou melhores que esses homens, é assim. Eu desejo que na Academia entrem mulheres para além do facto de serem mulheres. Hoje em dia temos de reivindicar o facto de sermos mulheres, gostaria que chegasse um momento em que já não tivéssemos de fazê-lo.
JF: No seu discurso na Real Academia Galega falou na importância da poesia no ensino. Como é que se fala sobre um poema? Como é que ensinaria alguém a ler um poema?
Eu não sou professora de Literatura.
JF: Sim, nós sabemos. É da área de História.
Sou de Geografia e de História. Como ensinaria eu a ler poesia? Não faço ideia, o ensino da poesia é algo que está fora do meu trabalho. De qualquer maneira, falei da importância do ensino, sim, parece-me fundamental precisamente essa ideia que tenho da poesia como celebração do facto antropológico de que falemos, de que sejamos capazes de falar, pois parece-me que isso tem de estar presente na educação dos rapazes e das raparigas, não é? E teria que ser transversal como o ensino da pintura ou da música.
JF: Diz também que a poesia é um meio para uma língua sobreviver.
Pensar que a poesia é uma das fórmulas que uma língua tem para sobreviver tem que ver com essa ideia que repito: considero a poesia a celebração da língua, do facto de falarmos. Sem poesia, sem poetas, ninguém poderia falar além de línguas instrumentais. O poema é realmente necessário porque mostra essa capacidade, essa liberdade que os sapiens têm de criar língua, de vencer a escravatura a que somos submetidos. A própria linguagem tem essa capacidade e disso se ocupa o poema.
JF: O galego sobrevive pela poesia? Optou por escrever em galego ou foi natural?
Sabes que o galego se encontra numa situação muito difícil, com políticas linguísticas contra o seu uso e a sua propagação. Então, para uma língua como o galego a poesia é duplamente importante, claro. Duplamente importante no sentido em que evidentemente, se escrevemos poesia, é porque ainda restam possibilidades de que esta língua sobreviva. Por outro lado, quando uma língua perde tantos falantes, como é o caso do galego, e para além disso é uma questão de substituição geracional, pois claro, isto é uma grande dificuldade para escrever poesia. Porque um poeta, para mim, para além de toda a tradição escrita, tem de estar continuamente em contacto com os falantes para ver como está a funcionar a língua em que vai escrever. Se se lhe tira isso... é complicado, não é? Mas, ainda assim, restaria a possibilidade de escrever numa língua que não tivesse falantes.
No meu caso, comecei a escrever poesia muito pequena, tinha dez anos, e escrevi poesia em castelhano, toda a minha educação foi em castelhano. Tenho como que dois ciclos de escrita de poesia: desde os 10 até aos 18 anos escrevi em castelhano; depois deixei de escrever poesia até aos 25. Depois, então, neste segundo ciclo de poesia que vai até hoje, decidi escrever em galego, já estava consciente de como era a situação linguística na Galiza e optei pelo galego.
JF: Reflecte na sua poesia frequentemente sobre as limitações da linguagem do ser humano. Diz que não é só a língua que está ameaçada, mas também a própria capacidade linguística. O que é que a ameaça?
É um pouco aquilo a que já te respondi antes, numa pergunta já te respondi a toda a entrevista [risos]. Eu penso que a capacidade linguística da espécie, como tudo o que é criativo, e como a capacidade de reprodução da espécie, que está no ventre das mulheres, tem mecanismos de captura por parte do poder, não é? Há poderes aos quais não interessa que o ser humano seja livre, interessa-lhes que a espécie seja mão-de-obra oprimida e um conjunto de úteros expropriados para poder explorar melhor. A última coisa que lhes interessa é que essa massa de população tenha capacidade linguística. Porque a capacidade linguística é reflexiva, é reflexão e é desobediência, a possibilidade de escapar, de desobedecer e de te considerares não como mão-de-obra explorada ou só como uma fêmea que reproduz a espécie, mas sim como outras possibilidades... Então, a tal capacidade linguística está ameaçada pelas tentativas desses poderes que querem impedir-nos de ser livres através da linguagem.
JF: Acha então que a poesia é um acto político?
Sempre, sempre. Eu julgo que tanto a poesia, como qualquer actividade humana, criativa, as artes em geral ou a filosofia, é sempre política. Eu penso que o político é o corpo, ter corpo, existir é político.
JF: E acha que a poesia pode ter efeitos práticos na vida das pessoas?
Sim, tem sempre. Uma pessoa que lê um poema vai ter uma capacidade linguística maior do que uma pessoa que não lê poesia, e portanto vai ser mais livre e vai ser sobretudo mais feliz.
JF: Vou agora usar um verso seu para fazer uma pergunta: “existe um interior/exterior do poema?”
Olha, não me lembro. Como era o poema?
JF: Chama-se o “Exterior do poema”.
Sei que poema é, sim... é um poema de Charenton, mas o problema é que não me lembro de como era. Se tiveres aí o poema, dou uma vista de olhos. Se a linguagem é tudo ou se há algo fora da linguagem? Essa seria a pergunta, se há mundo para além da linguagem, não é?
É um poema que destaca a omnipotência da linguagem no sentido em que a linguagem não é privada, não é pessoal: nós não falamos a linguagem, é a linguagem que fala por nós. E de alguma maneira o poema pergunta se o poeta tem uma voz interior com a qual podemos dominar essa estrutura férrea, a grelha da linguagem de que fala Paul Celan. Penso que a resposta do poema é irónica. Eu hoje responderia que... Já passaram anos sobre esse poema e tenho essa questão mais esclarecida, ou de uma maneira diferente da que tinha em Charenton. Diria que a única possibilidade que temos para ser livres, para escrever poesia, para ser feliz, o que quer que seja a felicidade, é sermos capazes de pôr um freio a essa linguagem que nos quer falar, que quer falar por nós. E sermos capazes, na medida do possível, de nos falarmos.
JF: Quando li o poema pela primeira vez, pensei na velha questão da poesia: conteúdo e forma. Pensou nisso?
Não, não pensei nisso porque para mim a forma é o conteúdo. Quando escrevo, o que faço é resolver a forma, e a forma é o conteúdo, como uma espécie de respiração que se desprende do magma inteiro da linguagem. Imagina que é como uma pintura: a linguagem é o fundo e de repente há uma espécie de força que avança, as figuras de uma pintura, e então a forma tem que ver totalmente com o fundo, porque não é diferente, é simplesmente um adiantar-se, um apresentar-se. Imagina agora a linguagem; um poema simplesmente se desprende dessa “totalidade”, digamos que a linguagem se cinge a uma forma que é o poema, mas a linguagem não desaparece, a forma e o fundo, o conteúdo e a forma são a mesma matéria ou o mesmo espírito, se preferires.
JF: Como é figurar no Woodberry Poetry Room? Como é ler e ouvir os seus poemas traduzidos?
Pois bem. Como eu não sei inglês, não posso ter uma perspectiva crítica, é maravilhoso.
JF: É uma tradução muito bonita. Gostei muito de os ouvir em inglês.
Suponho que sim, pois a Erin Moure é uma grande tradutora. Eu não sei inglês, e em relação à tradução da Erin Moure fiz um acto de fé. Quando ela chegou, disse-lhe que sim e que não tinha ideia de como ia ser tudo isto. E aí começou toda uma aventura que nos levou a Harvard, a ir ler aí. E como foi? Foi maravilhoso, isto é, eu não sei muito bem dizer estas coisas, para mim foi como uma dádiva, uma prenda, uma sorte, um grande presente. Eles interessaram-se pelo livro em que a Erin responde a cada um dos meus poemas. E chamaram-nos. A Erin estava um pouco reticente em ir a Harvard porque desconfia muito das grandes instituições, mas eu não estava nada reticente. As grandes instituições não me importam nada. Mas tenho de explicar melhor, claro que me senti muito honrada, mas para mim foi mais um sítio, igual a qualquer outro. Contudo, estou consciente de que é Harvard, de que recitar ali não é o mesmo que fazê-lo no bar do lado. Foi maravilhoso, receberam-me muito bem, trataram-me muito, muito bem, de modo extraordinário.
JF: Acha que é possível traduzir poesia?
Eu acho que sim por motivos pessoais. Compreendo as razões pelas quais há pessoas que dizem que não. Mas para mim a tradução é vital. Não fossem as traduções não teria lido Seferis, Kavafis, para falar do grego. Claro que ler a tradição em galego chega, desde as cantigas medievais até aos dias de hoje, chega, mas seria uma perda enorme não poder conhecer outras tradições poéticas, seria uma perda maior do que aquela que se perde na tradução, não seria? Compreendo as pessoas que só lêem quando podem ler na língua original. Não é o meu caso.
JF: Foi recentemente traduzida para português. Gostou da experiência?
Foi fantástico. Não posso estar mais agradecida. Parece-me maravilhoso e tenho vontade de repetir; para além disso, para te dizer a verdade, foi de todas a tradução que mais me emocionou, ler-me em português. O João Paulo Esteves da Silva é um grande tradutor e foi seriíssimo na tradução. Foi uma proposta da Douda, eu não conhecia ninguém em Lisboa, por isso o meu agradecimento é grande.
JF: Em Portugal há pouca poesia galega, infelizmente.
Muito pouca, muito pouca. Eu usufruí muito e aprendi muito, porque é muito bonito ler os meus poemas em português, são os mesmos poemas, há muito pouca diferença, mas há diferença, e essa diferença é muito importante. Aprendi muito em todo o processo.
JF: No site escolhemos poemas de que gostamos e depois fazemos uma análise breve desse poema, e normalmente começamos com “gosto deste poema porque...”. Conseguia dizer-me qual o seu poema favorito?
[risos] Na verdade, não há poemas favoritos.
JF: E há poetas favoritos?
Mais do que poetas favoritos há poetas que estão aí num determinado momento. Neste momento estou a ler Montale, poeta italiano, e de repente esta leitura, e quando digo “ler Montale”, estou a dizer ler as obras completas, leio os poetas inteiros, na medida em que posso, se há tradução. Quando pego num poeta não pego num livro em particular, pego sempre na obra completa. Na medida em que posso, claro.
Esta leitura de Montale vê-se de repente interrompida porque se publica em castelhano a obra completa de Ingeborg Bachmann, que eu já tinha lido – Ingeborg Bachmann é uma das minhas poetas favoritas, poderia dizê-lo –, mas neste momento não a estava a ler, então paro de ler Montale e leio Ingeborg Bachmann. Quando acabar de ler Ingeborg, volto a Montale, mas ao mesmo tempo que estava a ler Montale estava a ler Horácio, estava a ler a Eneida. Como faço isto? Eu leio Montale sobretudo de manhã, mas ao longo do dia pego na Eneida, pego em Horácio... entendes como funciona? Agora estou a dizer Montale, Horácio, Eneida, ou Vergílio e Ingeborg Bachmann, mas, se me fizeres esta entrevista daqui por um ano, os poetas/as poetas serão outros/outras.
JF: Mas não há alguns poetas que estão sempre presentes? Podem ser influências?
Eu falaria, claro, da tradição galega, que está sempre aí. E dentro da tradição galega está aí sempre Ferrín, está Xohana Torres, está, claro, Rosalía, Manuel Antonio, está Pondal. Creio que estes. Na verdade estão todos, na verdade a poesia não tem autores.
JF: Como poetisa e como leitora de poesia, tem alguma embirração linguística ou poética?
Não gosto das rimas óbvias. Deixam-me muito nervosa, não posso com elas.
JF: Acha que é sinal de mau poeta?
Acho que é sinal de estupidez. E a poesia é o contrário da estupidez.
JF: Tem especial apreço por algumas palavras, formas poéticas ou figuras de estilo?
Gosto muito dos encavalgamentos, gosto mesmo muito. E a sextina é uma fórmula estrófica apaixonante. Não uso os metros clássicos, mas, se usasse, escreveria sextinas.
JF: Costuma ler crítica literária?
Não muito. E o que se entende por crítica literária?
JF: Perguntava se acompanha a crítica literária que se escreve em jornais e revistas literárias, por exemplo.
Dou uma vista de olhos, mas julgo que não sou leitora de crítica. Eu li, por exemplo, Blanchot. Sim, leio com muito prazer o que se chama teoria.
JF: E crítica sobre os seus livros de poesia?
Sim, claro que sim! Interessa-me muito.
JF: E gosta de ler o que escrevem sobre si?
Em geral, os críticos são muito amáveis comigo.
JF: E, para além de serem amáveis, também dizem coisas certas sobre a sua poesia?
Sim, sim, dizem sempre coisas certas. Em geral, sim.
JF: Li há pouco um texto sobre a sua poesia que falava do pretenso hermetismo dos seus poemas. Já li mais do que uma vez a referência ao hermetismo da sua poesia. O que pensa sobre isto?
Há gente que está empenhada em que a minha poesia seja difícil.
JF: Ser difícil é ser hermética?
É, em certo sentido. Eu não estou de acordo com a ideia de que a minha poesia seja hermética, mas não me importa muito o que dizem os críticos, isto é, os críticos têm o seu discurso e cada um lê o que pode. A minha poesia não é hermética e também não é difícil. É complexa, como tu dizes, mas toda a poesia é complexa, ou seja, não podemos pedir a um código de milénios que seja transparente, para isso já temos contra-senhas, não é? E vemos televisão, certo?
JF: E o que é que procura na poesia que escolhe ler? Agora está a ler Montale por algum motivo especial?
Leio uns poetas num momento e outros/as noutros, não sei bem dizer. Porque estou a ler Montale? Montale é um poeta que existe há muito tempo, não está na moda, não está no circuito, e no entanto pus-me a ler Montale. Comecei a ler Montale porque faleceu Xohana Torres e ela tinha uma relação com Montale. E quis ver se podia entrar na obra de Montale para ver do que é que Xohana Torres gostou. Claro, encontrei... encontrei a reflexão sobre o tempo e a fulguração de certas lembranças sobre as quais Montale e Xohana Torres escrevem de uma maneira magnífica. Eu tentei ler Montale há anos e não foi possível, não consegui entrar. Agora que a grande Xohana Torres já não está, sim, foi possível. Os poetas estão aí, como dizia antes, provavelmente não há autores, então, num momento são uns, noutro são outros e outras, mas são imensos. Aqueles que menos te podem interessar são fantásticos. Poderíamos perguntar: que sentido faz ler Píndaro, por exemplo, nos nossos dias? E contudo leio Píndaro e acho espectacular.
JF: E portugueses? Gosta da poesia portuguesa?
Infelizmente não conheço muito a poesia portuguesa. E por uma razão. Eu julgo que em Portugal não se valoriza a poesia galega nem se valoriza o facto de que exista a Galiza e que tenhamos uma língua que é o galego. A maior parte da população portuguesa não reconhece que somos galegos, querem-nos espanhóis. Isto deixa-me muito triste, não gosto nada. Não ler toda a poesia portuguesa que deveria ler é uma maneira de lhes pagar na mesma moeda. A experiência de estar em Caminha a comprar coisas e de os vendedores me falarem em espanhol quando eu estou a falar em galego, fico muito zangada. Já sei que da minha parte é uma maldade porque quem perde sou eu, mas é assim mesmo. Claro que leio poesia portuguesa, sim, mas não leio tanta poesia portuguesa quanta se esperaria que lesse. E não a leio por esta razão que te acabo de dar.
JF: Acha que os galegos têm mais abertura em relação a Portugal e à poesia portuguesa?
Julgo que sim, julgo que os galegos lêem muita poesia portuguesa. Não é o meu caso, porque eu sou uma malvada [risos]. Sim, os/as poetas galegos/galegas lêem poesia portuguesa. Julgo que os galegos em geral têm uma abertura em relação a Portugal e que os portugueses nesse sentido são muito obedientes ao Estado português. Vou explicar melhor. Penso que Portugal tem uma má relação com Espanha – é óbvio – e não aceita que uma parte de Espanha seja também parte da sua história, pois a Comunidade Autónoma da Galiza de hoje em dia faz parte da antiga Gallaecia à qual pertenceu o Norte português, e o galego formou-se aqui, neste sistema identitário. E isto é algo que o Estado português não admite e assim o transmite na educação aos seus cidadãos. Então, penso que os cidadãos portugueses são muito obedientes. E eu não gosto nada da obediência.
JF: Já senti essa mágoa noutros galegos.
É uma mágoa, porque tu vês que não te aceitam. Eu refiro-me à população em geral.
JF: Voltando à sua obra. Há várias referências bíblicas na sua obra. Há alguma razão especial para isto?
Não. A Bíblia é a Bíblia, é um livro como qualquer outro, mas é o livro dos livros. Pensei nisto com muita calma e disse: porque vou ignorar? Isto é uma riqueza, há que encará-lo como riqueza. Se eu falo sem nenhuma dificuldade de Vénus, porque não vou falar do sacrifício de Isaac? É nesse sentido. Não há da minha parte nenhum teísmo nem nenhuma crença, mas sim o reconhecimento de que a Bíblia faz parte da minha cultura e de uma Europa que tem uma raiz no Cristianismo. O Cristianismo é um conceito muito amplo que impregna a cultura e parte da minha vida. Não sou uma pessoa religiosa nem me defino como religiosa, mas não vou ignorar essa parte da minha educação. Isto é uma riqueza e uso-a; como posso usar qualquer coisa.
JF: E é um livro que também vai relendo.
Sim, releio a Bíblia. Passo bastante tempo a ler, de alguma maneira a minha vida organizou-se para poder ler. Como está organizada para poder ler, leio bastante, tenho tempo para ler.
JF: Para além dos poetas que referiu, dos poemas que lê, lembra-se de alguma coisa que a leve a escrever poesia?
Os poemas, quando aparecem, são sempre algo maravilhoso e algo que desconheço, é inesperado. Aparecem. Que sei eu? O penúltimo poema que escrevi foi uma surpresa muito grande, foi uma imagem que tive de um sonho, um sonho de estar perdida num bosque, e então a partir daí elaborei o poema e o poema tem a sua vida. A minha maior dificuldade é não me intrometer na vida do poema, quero sempre intrometer-me na vida do poema, quero sempre meter-me e dirigir-lhe o rumo.
JF: Costuma alterar os poemas?
Sim. Mas quando falo de intrometer-me significa que quero dirigi-lo, e o poema não quer que ninguém o dirija, percebes? Isto para mim é difícil porque tenho a tendência para querer mandar no poema. O que faz o poema é mandar-me para fora, como tem de ser, e é difícil para mim não estar presente no poema, é uma luta. É algo que fui aprendendo ao longo dos anos: que eu não tenho de me intrometer nas minhas tolices e sobrecarregar o poema com explicações.
Então, não há nada especial, pode ser qualquer coisa, pode ser esta chaleira, pode ser um facto histórico. Para mim escrever é um exercício de atenção. Pressupõe estar atenta e aberta ao mundo, tanto ao nível do pensamento como ao nível das sensações. Ir à caça. É um estado semelhante a ir à caça, e quando falo de caça para mim é remeter para o paleolítico e para a necessidade de caçar para comer, é um estado de atenção. Então, que eu saiba, não há nada de especial que o desencadeie. Também não sei muito sobre os meus poemas.
JF: Temos uma secção sobre curiosidades literárias. Lembra-se de alguma que pudesse partilhar connosco?
Teria que pensar melhor, mas há uma história que talvez tenha graça, é que muitas vezes eu não reconheço os meus poemas... e às vezes não é muito claro para mim o que estou a fazer, estou a ler alguma coisa e leio um poema e digo: “caramba, este poema está muito bem”, e depois percebo que é meu. Primeiro não o reconheço e depois vejo a minha assinatura... Isto tem-me acontecido, ler um poema e não me dar conta de que é meu e dizer “está muito bem” e depois ver que é meu, é uma grande satisfação.
Tradução de Joana Meirim