Entrevista a Rui Caeiro
Maria S. Mendes
Entrevista a Rui Caeiro
Oeiras, 17 de Abril de 2018
Telefonámos a Rui Caeiro para lhe fazer a proposta da entrevista. Não tivemos um sim declarado, mas uma advertência: “atenção que não tenho nada de interessante a dizer, acreditem que vai ser um flop”. Apesar deste aviso, marcou encontro connosco no Palácio do Egipto, e a entrevista teve de tudo um pouco, menos do tal flop anunciado.
JF: Gosta de poesia?
Não se trata de gostar ou de não gostar, trata-se de que se tem de a aceitar quando ela se impõe.
JF: E isso é o mesmo enquanto escritor e leitor? Gosta tanto de escrever poesia quanto de a ler?
Quando dei a resposta estava a pensar em escrever. Em relação à leitura de outros, há poetas que leio sempre com elevado prazer e elevada surpresa: um poeta contemporâneo chamado Luís de Camões, por exemplo.
JF: O que é ser um poeta contemporâneo?
Alguém em quem nós somos capazes de nos rever mais do que nos revemos nas figuras que nos apresentam para esse efeito, os chamados poetas do JL, por exemplo.
JF: Acha que há poetas sobrevalorizados?
Sobrevalorizados... é um não acabar.
JF: E subvalorizados?
O Diogo Vaz Pinto fez um artigo recente para o isobre alguns tipos de que não se fala muito mas que são figuras muito fortes, Carlos Poças Falcão e Rui Nunes, por exemplo. O Rui Nunes é daqueles casos em que eu costumo dizer: “há aí uns tipos a escrever umas coisas e que pretendem ser escritores, agora o Rui Nunes é outra coisa, esse é um escritor a sério, não faz coisinhas, esse lida com a literatura, luta com a literatura, tem raiva à literatura”. É preciso ter raiva à literatura para se fazer alguma coisa interessante neste campo, porque de outra maneira estão apenas a repetir-se as banalidades que andam no ar. O Rui Nunes é um caso. E tem outra característica que eu aprecio muito, a pessoa e o poeta são parecidos, que é uma coisa que nem sempre acontece. O Herberto é capaz de ser o nosso maior poeta da 2ª metade do século XX, lidei um bocadinho com ele, não muito, mas a pessoa não me encantava, também não me desencantava nem dava para embirrar, mas não encantava. Já um Rui Nunes, ou aquele tipo do Porto que morreu há uns anos, o Manuel António Pina... Fui entrevistá-lo ao Porto, e passados vinte e cinco minutos, era como se já nos conhecêssemos há anos. E o melhor da entrevista ficou fora do gravador, é uma coisa que acontece muito. E marcámos coisas para o futuro, mas a morte dele veio estragar isso tudo. Outro tipo que é igual à poesia dele – isto eu já escrevi várias vezes – é o António José Forte. Ele não tinha nada ar de literato, o que é óptimo. Havia nele uma suavidade no falar – e na maneira de ser – que não eram nada incompatíveis com a revolta que também havia dentro dele: ele que era um anarquista e que era um puro.
JF: Já percebi que isso é um critério para o seu cânone pessoal, não é?
Sim, sim. Literato é de fugir.
JF: Já li o adjectivo “discreto” aplicado a si. O que é ser um poeta discreto?
Quer dizer que, entre os muitíssimos defeitos que tenho, não figura realmente o ser pretensioso, cagão, isso é coisa que eu não sou. Nessa medida, serei discreto?
JF: Então tem qualquer coisa de modesto, coisa que escapa aos literatos de que falou há pouco.
Sim, creio que sim.
JF: Quando fala da raiva da literatura parece também que é uma raiva contra um certo tipo de literato. Faz sentido?
É cada vez mais consensual a ideia de que, se queremos fazer alguma coisa em literatura, temos de a fazer contra a literatura, porque se não estamos a repetir ou a papaguear o que já foi feito. Não vale a pena ser um daqueles, como é que se chamam... os prémios saramagos, talvez com uma excepção única, são tipos que sabem escrever, escrevem correctamente, mas o que eles escrevem não adianta a ponta de um corno, porque aquilo já está feito, já está feito de outra maneira e já está feito de melhor maneira, não vale a pena ir por aí. Noutro dia estava aqui uma moça neste café a quem eu perguntei quem é que ela gostava de ler e ela respondeu Pedro Chagas Freitas. Ela gostava sinceramente dele, não deu para dizer “isso não interessa nada”. Não fiz isso. Só o faço com pessoas que têm mais conhecimentos. Ela precisava de ler muito até perceber que aquilo não interessa nada.
JF: Acha que as pessoas podem aprender a ler uma literatura de melhor qualidade?
Eu trabalhei durante dez anos na editora &etc, e é uma parte da minha vida a que confiro uma certa importância. Na &etc entravam aves muito esquisitas e que, de alguma maneira, gostavam de poesia, queriam escrever um livro: “tenho aqui umas folhinhas que trouxe, se não se importasse...”. Na maior parte dos casos aquilo era de fugir, mas havia uma coisa que estava sempre certa, e que se lhes podia dizer, que era: “nós temos grandes poetas, um desses foi o tal Camões”, mas há ainda o Pessoa, o Pessanha, o Sena... E a “Cantiga, partindo-se” de João Roiz de Castelo Branco, e o soneto “O sol é grande” de Sá de Miranda.
Quando veio cá o escritor brasileiro Rubem Fonseca, ele estava a falar com os seus colegas escritores portugueses e disse-lhes qualquer coisa como: “vocês têm uma grande responsabilidade, vocês falam uma língua de onde no século XVI saiu isto”. E pega num livrinho e lê um soneto do Camões: “e portanto vocês têm a mesma língua, e isso dá-vos uma grande responsabilidade”. Esse respeito, esse respeito pela língua, é uma coisa que talvez se consiga ensinar. E então os tais meninos que apareciam na &etc, quase todos tímidos (mas também apareciam uns, embora poucos, com o rei na barriga)… E uma coisa que era sempre possível dizer-lhes: “há tantos poetas fundamentais que tu ainda não deves ter lido, porque naquilo que tu escreves não há marca nenhuma da escolha de um caminho que não seja a banalidade poética”.
Aconteceu uma coisa gira: esses a quem dei tampas não me ficaram a detestar por causa disso, alguns ficaram até agradecidos pelas tampas que levaram, isso é bonito. Devo dizer que não é o que acontecia na maior parte dos casos, quem leva a tampa não gosta depois e deve sair a resmungar “puta que os pariu!”. Houve uma feira no Regueirão dos Anjos num dos últimos sábados, e foi ter comigo um tipo a quem em tempos eu tinha dado uma tampa, um desses: é médico, um jovem médico, ele é muito bonitinho, a namorada também é muito bonitinha, fazem um casal muito giro, e ele continua a escrever, e a ler, e a comprar livros de poesia lá na feira, mas nunca publicou nada, por enquanto ainda não, felizmente ou infelizmente, ver-se-á. Há casos assim.
O primeiro original que o poeta Manuel de Freitas apresentou foi à &etc, e a resposta que ele levou foi: “isto tem coisas boas, mas necessita de ser mais trabalhado”. E ele tem uma personalidade forte e fez o seguinte: de certa maneira não ligou ao que dissemos, mas não se zangou, levou aquilo a outra editora e a outra editora publicou, e quando escreveu o seu segundo livro de poesia levou à &etc e foi publicado aí.
JF: Gostou de fazer esse trabalho de edição, contribuir para editar poetas? Isso também é lidar com o mundo dos literatos e com as ambições literárias das pessoas.
Sim. Quer dizer, ainda não tinham chegado ao ponto de ser literatos, esses eram na maioria miúdos imberbes, tipos bastante novinhos e que aguentam conselhos, bons ou maus, e tampas justas ou injustas. Foi giro, além dos originais que recebíamos pelo correio, às vezes apareciam assim casos e eu dizia ao Vítor Silva Tavares: “este aqui é melhor ver com cuidado”.
JF: E desses muitos autores há algum que destaque? Há um publicado na &etc de que gosto muito, o Nunes da Rocha, também muito pouco valorizado.
O Nunes da Rocha foi muito ajudado pelo Vítor Silva Tavares, os livros não se vendiam muito e apesar disso o Vítor continuava a publicar. Isso é a favor do Vítor, sabia que era bom, não pensava no valor comercial, as tiragens eram sempre pequenas e sempre as mesmas, e procurava-se que, mesmo os autores que se vendiam sempre mais ou menos, o dinheiro que se fazia nesses desse para perder noutros, era este o espírito.
JF: Falámos há pouco de poetas discretos, e a certa altura no seu último livro diz que os poetas são uma categoria particular de malucos. Porquê?
No livro falo da loucura como algo de contra a corrente, algo de libertador. Esta ideia também é contestável, na medida em que é uma posição um bocado egoísta, ou romântica, mas é uma maneira de exaltar uma certa atitude contra a corrente. Foi agora publicado no Homem do Saco um texto pequenino meu, extraído de um livro algo extenso, e de que algumas pessoas até gostam, mas em que eu já não me revejo e que nem tinha paciência para reler, mas não sei porquê estava à procura de uma coisa qualquer e passei os olhos e pensei: “este texto aqui safa-se, acho que o podia escrever agora”. O elogio que aí faço aos bêbados é semelhante ao elogio que agora faço aos malucos, tem muito a ver com a necessidade de fugir do quotidiano que temos, ou que tenho.
JF: Usa a poesia no seu quotidiano?
Acho que sim. Mesmo que não o quisesse fazer, isso acontecia. Eu e a poesia passamos tempos juntos, sim.
JF: E de que maneira? Lendo, escrevendo ou citando de cor poemas?
É mais deixando-me impregnar por ela, sendo o caso. É mais estando atento à realidade e interpretando-a numa certa feição diferente. No meu último livro, que são dois num, eu faço isso, aproveito cenas do quotidiano que permitem uma ressonância diferente.
JF: Temos nos Jogos Florais uma secção, a Marginalia, onde partilhamos curiosidades literárias. Nos seus Diálogos Marados, também partilha histórias curiosas com algumas pessoas da cena literária portuguesa com quem conviveu. Porque é que teve vontade de partilhar essas histórias?
Foram histórias giras que me aconteceram e que eu gostava de contar às pessoas, e que as pessoas achavam interessantes. E, se essas achavam, podia ser que outras também achassem, e nessa medida algumas foram para lá porque eram história desse tipo, e outras foram para lá porque foi a maneira de eu confessar alguma coisa que precisava. E aquilo também seria uma boa ocasião para o fazer, converter isso que eu precisava de dizer num diálogo marado.
JF: Alguns não parecem assim tão marados?
Marado no sentido de serem algo esquisitos… têm todos qualquer coisa de pouco habitual, têm todos qualquer coisa de especial. Por exemplo, passo por dois tipos que vão a conversar sobre mulheres, e dizem duas ou três bacoradas sobre mulheres, e estavam muito satisfeitos com o que tinham acabado a dizer, e continuaram a dizer, só que entretanto já tinham passado por mim e não apanhei mais, tal como lá digo, não devo ter perdido grande coisa. Mas porque é que essas bacoradas em especial me interessaram, porquê aquelas e não outras? Talvez tivessem algo de típico, algo em que muita gente embarca, talvez houvesse muito mais gente que pudesse dizer aquilo, e dizer aquilo com boa consciência, e talvez daí entraram na categoria solene de diálogos marados.
JF: O gato é uma figura literária na sua obra. Há algum motivo especial para isso?
Sim, a minha mulher trabalhava na escola inglesa de Carcavelos, o St. Julian’s. A escola tem um parque muito grande, e nesse parque apareciam animais, nomeadamente gatos, e ela estava uma vez sentada lá no parque, e houve um que lhe saltou para o colo. Saltar para o colo poderia ter o significado de “vá lá, adopta-me”, e ela assim fez: meteu-o numa caixinha de cartão e chegou com ele lá a casa. A partir daí o gato ficou uma pessoa importante, talvez a pessoa mais importante da casa. Quando o gato morreu, coisa de que eu falo noutro texto, adoptou-se logo outro.
Mas respondendo à pergunta. Há um motivo especial, sim, é tudo aquilo que o gato tem de admirável, de criatura perfeita.
JF: Já no livro 49 espinhas para um gato faz um elogio à figura do gato e revela a superioridade deste animal na relação que tem com o ser humano. Mostra-nos, por exemplo, que o gato está longe de ser um animal dócil e submisso e interessado em fazer companhia ao seu dono...
Se estamos à espera dos carinhos que o gato nos faça, podemos desistir logo, mas também é verdade que às vezes, inesperadamente, ele é capaz de nos surpreender com um gesto completamente inesperado e que nos fazer pensar: “não estava a ver-te a fazeres isso, não estava a ver-te a procederes assim, não estava a ver-te a olhares dessa maneira”. Eu descrevo, quando morreu o cão que nós tínhamos, que ele e o gato não gostavam um do outro, é natural. Quando o cão morreu, aproveitei uma altura em que a minha mulher foi aqui ao mercado – a nossa casa é a seguir, a casa é aqui –, ela foi ao mercado e eu pus o cão dentro do saco de plástico preto. Quando saí com o saco, a maneira como o gato olhava para o saco era qualquer coisa de especialmente difícil de definir. O que significava esse olhar? É muito difícil de dizer, uma curiosidade muito, muito intensa, e porventura uma compreensão grande do que estava a acontecer, sim, certamente. O Luís Gomes, da livraria Artes e Letras, fez uma edição de um livrinho meu, que se chama Um gato no inferno, grande parte à base da vivência com esse gato e da morte dele. Ele está no inferno como as amantes do Dante, as grandes amantes foram parar ao inferno, porque amar muito é da ordem do infernal, do maldito. Foi um gato muito amado e está no inferno, pronto, foi um livrinho que se chama Um gato no inferno e que saiu com erros chatos, teve de ser emendado à mão...
JF: Tem sempre muito cuidado nas suas edições, tem edições de autor ou de editoras mais pequenas. Prefere publicações mais discretas e mais afastadas das grandes editoras e da publicidade que elas promovem?
Não me interessa muito publicar em grandes editoras, isso propriamente não me interessa e acho mais piada às pequenas edições de autor, aos editores de vão de escada, realmente acho mais piada a isso. O Snob, a Língua Morte, a Averno...
JF: Compreendo essa ideia de estar longe das grande editoras, mas não tem pena de se tornar menos acessível ao público em geral, e só acessível a um nicho já ligado às pequenas editoras?
Eu tenho consciência de que as pessoas que gostam mesmo de ler poesia não são em grande número. Digamos que são poucos, mas bons. Você veja que dantes era capaz de se fazer uma tiragem de um livro de poesia de mais de 1000 exemplares, hoje em dia só em casos muito especiais.
Eu escrevi um livro erótico, livro de poesia erótica (O quarto azul e outros poemas), e o jovem editor da Letra Livre disse-me: “isto até ao fim do ano está vendido”. Não foi nada assim, ficou anos na prateleira.
O Rui Pires Cabral, que é um poeta que eu aprecio (filho do António Manuel Pires Cabral, o pai até gostou de um livro meu...), dedicou um livro “aos meus (seus) trezentos leitores”, e essa dedicatória significava que trezentos era pouquíssimo. E hoje ter trezentos leitores já é muito bom. Os hábitos de leitura vão-se alterando.
JF: Nos Jogos Florais escrevemos sobre poemas de que gostamos. Tem algum poema favorito?
É difícil... Se me perguntassem por um poema de que goste muito, a resposta poderia variar conforme o meu estado de espírito. Se estivesse num dia de abatimento, poderia indicar um poema do Pavese, que é um dos meus escritores preferidos; se estivesse num dia mais eufórico, poderia pensar num tipo com mais saúde. As duas coisas são muito necessárias. Jorge de Sena tinha muita saúde e muita genica. Esse dava para a resposta a dar nos dias em que me sinto de espírito mais positivo.
JF: Acha que o Jorge de Sena tinha muita saúde? Em que sentido? É que eu gosto muito dele, mas acho que era um bocadinho bilioso...
Isso é outra coisa, isso é o espírito polemista.
JF: Nesse capítulo não há muitos como ele, pois não?
Ele não foi substituído, não. Em termos de crítica, estamos bastante desasados neste momento.
JF: Costuma ler crítica literária.
Leio, leio.
JF: Lê o JL?
Passo os olhos pelo JL sempre, até para poder dizer mal. Geralmente o JL, a sensação que me dá é que é sempre mais do mesmo, tem uma determinada fórmula e vai repetindo. Uma vez por outra, há uma coisa de antologia, como os artigos do Helder Macedo, que é um homem muito inteligente e talentoso. Já é velhote. Mas isso são excepções. Agora o resto…
JF: Costuma ler o que os críticos escrevem sobre si? E parece-lhe que acertam?
Não há propriamente críticos a escreverem sobre mim, há amigos meus...
JF: O Diogo Vaz Pinto também escreveu agora.
Sim, o Diogo, mas são amigos, são suspeitos. O que encontro assim de mais significativo é o poeta espanhol que costuma escrever para as revistas do Manuel de Freitas, Telhados de Vidros e Cão Celeste. É de Barcelona e chama-se José Angel Cilleruelo. Eu gosto muito do que ele escreve e a ele deu-lhe para simpatizar com as minhas coisas. E acho que, daquilo que se escreveu sobre mim, descontando os exageros da amizade, ele disse coisas relevantes. Escreveu um livro agora, mandou-me o livro e disse: “tu és personagem deste livro”. Conta o nosso encontro no Paralelo W, aqui há uns anos, e foi a única vez que o vi, que estive com ele. Mas ele já viveu dez anos em Portugal, há uns anos atrás, de maneira que fala muito bem a nossa língua e conhece muito bem a respectiva poesia, a Adília, a Golgona, ele conhece esta gente toda.
JF: Associou esses dois nomes por algum motivo?
Ele já falou sobre as duas quando cá veio, mas nessa altura eu não estive com ele. Acho que falou sobre uma e outra, mas não exclusivamente.
JF: Já imaginou o seu nome contemplado numa nova edição da História da Literatura Portuguesa?
Não, acho que tenho um bocado de horror a isso. Sendo eu uma pessoa de muitas leituras, tenho muita consciência de que há muitas centenas mais, e como tenho muita consciência disso não me sentiria bem se me pusessem lá num pódio qualquer.
JF: Isso é modéstia? Outros não poderiam dizer o mesmo e estão lá?
Eu acho que não é uma questão de modéstia, porque a modéstia vira facilmente falsa modéstia. E no meu caso acho que tem a ver com... Sou uma pessoa informada, sobretudo em matéria de poesia, e tenho consciência realmente de que há bons e muito bons. Somos bons no romance, na crónica não temos grandes, no conto também não, mas na poesia temos nomes grandes.
JF: Acha que, numa História da Poesia, por exemplo, só estão os melhores? É por essa razão que se exclui?
Seja qual for o critério para a selecção, há sempre pessoas que eu vejo mais interessantes do que eu, antes de se poder falar de mim. E não tem a ver com falsa modéstia, é mesmo o que eu penso.
JF: Também tem vários trabalhos como tradutor. Gostou dessa experiência?
Quando estava ainda a trabalhar na EDP, onde estive vinte e tal anos, nos últimos anos eu já tinha traduzido coisinhas várias, mas mais sobretudo a partir da década de 90. Traduzi um suíço maluco, Henri Roorda, que escreveu um livro a explicar porque é que se ia suicidar quando o acabasse de escrever. E assim fez: acabou de escrever, bebeu um copo de vinho do Porto e disparou. Isso era coisa de que o Vítor Silva Tavares gostava. Ele gostava de coisas esquisitas, mordia logo. E assim foi, aquilo foi logo traduzido.
Traduzi o Pavese porque sempre gostei muito dele, de tudo, da poesia, romance, novela, ensaio literário, diário. Ele tem dois livros de poesia muito diferentes, um é poesia narrativa e o outro é poesia de amor. Ao que consta, apaixonou-se por uma actriz americana que foi a Itália filmar. Entrava num filme qualquer, tiveram o seu enrolo e depois ela foi-se embora. Ele não terá aguentado essa ausência e suicidou-se, dizem que está relacionado com isso.
Traduzi ainda um poeta espanhol chamado León Felipe, que fugiu da Guerra Civil de Espanha para o México. Alguns poemas dele são cantados, e muito bem cantados, pelo cantor espanhol Paco Ibañez. Traduzi uma escolha de poesia do León Felipe, acho que muito por causa do último texto, que me impressionou tanto... O último texto é uma carta que ele escreveu à irmã dele, que era mais nova. Essa carta é tão bonita, tão bonita que ele próprio a inclui num livro de poesia dele, e é apenas uma carta.
Traduzi o surrealista Robert Desnos, que escreveu um encontro inventado com a figura do Jack, o estripador. Esse livrinho também me encantou, e traduzi.
Traduzi uma novela que a Marguerite Yourcenar considera uma obra-prima, e eu também acho que é, do escritor francês Roger Martin du Gard, que hoje está muito esquecido, que é uma história com o seu lado delicado. Trata de um encontro sexual entre dois irmãos, irmão e irmã, mas pela forma discreta e natural como aquilo está contado é realmente um prazer de leitura. Chama-se A Confidência Africana, e a cena crucial passa-se no Norte de África. Também traduzi para a &etc Miguel de Unamuno e o suíço Charles-Ferdinand Ramuz. E pronto, foram estas as traduções para a &etc.
Como o Vítor tinha muito jeito e prática para fazer capas e preparar as edições, eu “utilizei-o” muito para me ajudar nas minhas edições de autor. Eram edições de autor, mas tinham capas muito giras, porque eram do Vítor, não eram minhas, não tenho jeito nenhum para desenhar ou pintar. E portanto fiz várias edições de autor. Enquanto lá estive, na &etc, publiquei um único livro meu com a chancela da casa (Sobre a nossa morte bem muito obrigado), e ainda hoje não sei se o devia ter feito, porque trabalhando lá acho que talvez não o devesse ter feito. Os editores franceses às vezes querem escrever uma coisinha sua. Sabe o que é que eles fazem? Não publicam na sua editora. Dão a outro editor e ele edita se quiser.
JF: E será que tinha uma editora mais certa para si que não a &etc?
Se calhar não, até porque o tema era delicado, era o suicídio. Era uma coisa delicada e podia até ser comparada, de uma forma burra, a uma incitação ao suicídio, mas não era isso. Mas podia ser interpretado assim, de maneira que... isso é crime.
JF: Tem alguma embirração linguística ou poética?
Tenho várias, sim.
JF: Coisas que evita escrever ou que também não gosta de ler nos outros, figuras de estilo, formas poéticas, palavras, etc.?
Ah, eu não estava a perceber a pergunta nesse sentido.
JF: [risos] Estava a pensar em embirrações pessoais, então? Isso já percebi que tem [risos].
Eu já estava a carburar em relação à outra resposta, mas voltamos a esta. Não vejo assim algo muito concreto. De uma maneira geral, mas isso faz parte da minha maneira de ser, não gosto de expressões grandiloquentes. Acho que os versos mais tocantes e que continuam depois connosco não foram feitos nessa linha da grandiloquência.
JF: E tem apreço por determinadas formas poéticas, palavras, figuras de estilo?
Eu escrevi muito pouca poesia propriamente dita. NoLivro de Afectos,há poesia, há versinhos, há linhas que não chegam ao fim, são versos, aí há. E há também nessequarto azulde que já falei. Mas não há assim muito mais.
JF: E no último livro que publicou não há poesia propriamente dita?
Não é poesia propriamente dita. Histórias são histórias ou historietas. E no texto sobre os malucos, às vezes, aqui e ali, há um tom poético.
JF: Então o que é para si poesia propriamente dita? Implica sempre uma noção de forma, de técnica, de rima, de métrica?
Normalmente implicará, mas tenho de reconhecer que, por exemplo, no livro Um maluco vem pousar-me na mão, quando eu digo que gostava de contar a um maluco, desses mais credenciados, a história completa dos meus fracassos, gostava de ver como é que ele reagia, e sobretudo gostava de ouvir a sua gargalhada final, como conclusão resposta. Ora bem, esse texto é prosa, mas eu acho que é um texto poético, e haverá mais, sobretudo nos malucos.
JF: Senti ao longo da nossa conversa que o Rui Caeiro não se sente confortável com o mundo dos ditos literatos, com o meio literário. Faz sentido?
No que eu tive de convívio com o Herberto Helder, por exemplo, ele nunca falava de literatura. Era a uma mesa de um bar, estivesse quem estivesse, e falava normalmente com toda a gente, contava histórias, mas não era a conversa de um literato. E ele apresentava-se como uma pessoa comum. Não era o poeta, não era o buda, não. Era um homem que dizia palavrões, frequentemente, como os amigos dizem quando estão num bar: “esse gajo é um filho da puta e não sei quê...”
JF: De alguma maneira não gosta dos poetas que fazem dissociação entre o poeta e a pessoa?
Bem, uma vez entrou no bar uma menina que estava a fazer um trabalho de faculdade para apresentar e tinha escolhido como tema a obra do HH, e ela disse: “gostava que me desse uns esclarecimentos sobre isto assim e assim”. Aí ele não era o gajo porreirão que estava ali à mesa a beber com os outros... Ela pediu que lhe desse umas ideias e ele disse-lhe: “minha menina, eu sou muito pouco dador”. E ali matou a questão assim.
Respondendo agora à pergunta, eu sei que há outras maneiras, há outras posturas em relação à literatura que não são necessariamente piores ou mais imorais do que a minha. Isso é possível, desde que seja feito com alguma autenticidade. Agora nós vemos cada vez mais poetastros a surgirem e que já metem isso no currículo das gracinhas que têm feito. Isso é que não pode ser. A poesia não é uma gracinha, a poesia vinga-se das gracinhas. E há aí muita gente a escrever que está muito satisfeita porque tem tido bom acolhimento e não sei quê. E a poesia? Onde é que fica?
JF: E o que é o bom acolhimento? É ter os tais 300 leitores?
É o ser publicado em editoras fortes, em livrinhos de capa dura, letras em relevo, essas esquisitices que hoje estão muito na moda. Como já disse, um poeta por quem tive sempre uma afeição particular, quer como pessoa quer como poeta, de que falo nos Diálogos Marados, e com quem convivi, foi o António José Forte, e ele praticamente não falava de literatura. O que é que ele fazia em relação à literatura? Fazia-a. Quando ele escreve o poema de amor à Aldina, com quem viveu os últimos anos da vida, quando ele faz um poema sobre o deslumbramento do Maio de 68, aí está a lidar com a poesia. Na conversa, na sua conversa do dia-a-dia, isso praticamente não vinha à baila. É um tipo de quem tenho muita saudade e falo dele num dos textos de que eu gosto mais no meu livro, nos Diálogos Marados, talvez porque é sobre ele. É um texto em que eu pergunto ao Vítor – “Tu já és um fóssil do nosso meio literário, já viste partir muita gente e alguns deles eram teus amigos. De qual é que tens mais saudades?” E ele diz só esta palavra: “Forte”. E eu compreendo.