Entrevista a Fleur Adcock
Maria S. Mendes
"Art's whatever you choose to frame".
Entrevista a Fleur Adcock
Londres, 28 de Março de 2018
Fleur Adcock abriu-nos generosamente as portas de sua casa e conversámos sobre saber de cor versos de Alfred Noyes e sobre deixar de fumar, sobre as diferenças entre escrever sobre factos e escrever poemas, sobre a falta de imaginação dos críticos, editores mandões, descobertas poéticas e sobre aprender romeno e outras línguas através da poesia. Falámos ainda sobre a diferença entre ser poeta e poetisa, entre ser autora, como constava na declaração fiscal de Fleur Adcock graças ao seu contabilista, e ser, como surgia no seu passaporte, escritora. Por fim, soubemos mais sobre o magnífico verso “A arte é aquilo que se decide emoldurar”.
JF: A poesia tem alguma utilidade?
Não me ocorre nenhuma.
JF: Sabe poemas de cor? Quando é que se lembra deles?
Os poemas que sei de cor são principalmente aqueles que decorei nos tempos de escola, quando temos a memória fresca. Há pouco tempo houve uma récita do Paradise Lost, na rádio, e eu lembrei-me dos versos “Of Man's First Disobedience and the Fruit / Of that Forbidden Tree, whose mortal taste / Brought Death into the World, and all our woe…”[Na tradução de Daniel Jonas: “Da rebeldia adâmica, e o fruto / Da árvore interdita, e mortal prova / Que ao mundo trouxe morte e toda a dor”]. De que serve ter isto na memória? Mas a verdade é que me lembro. [Risos]. Há um poema lindo que eu adorava quando tinha nove anos, chamado “The Highwayman”, de Alfred Noyes:
The road was a ribbon of moonlight over the purple moor,
And the highwayman came riding—
Riding—riding—
The highwayman came riding, up to the old inn-door.
Nesse momento, ele dá umas pancadinhas na janela e a sua bela namorada – a filha de olhos negros do senhorio... ele tinha prometido que a vinha ver e agora está ali: “I’ll come to thee by moonlight, though hell should bar the way.” Mas de repente os soldados estão a persegui-lo, atiram sobre ele, e o “highwayman” fica estirado numa poça de sangue, na estrada [Risos]. Bem macabro. As crianças de nove anos adoram estas coisas! Na nossa casa, éramos duas e sabíamos o poema de cor; competíamos para ver quem o recitava, até que nos autorizaram a recitar metade cada uma.
JF: Numa entrevista, em 2001, disse que se tinha tornado “menos interessada na escrita da poesia; simplesmente já não me entusiasma como dantes. É algo que já fiz; tornou-se num trabalho rotineiro.” Ainda pensa assim?
Já não penso dessa forma, mas nessa altura tinha ficado farta de toda a actividade da poesia: os concursos, os cursos, a escrita criativa, tudo isso. Quando era jovem, a poesia era uma ocupação privada; uma pessoa lia livros e depois punha-se a escrever os seus. Era assim que se fazia. Além disso, começou-me a aborrecer aquilo que andava a escrever. Pareceu-me que me estava a repetir, que já tinha dito aquilo tudo antes e um pouco melhor da primeira vez. Também tinha ficado completamente obcecada com a pesquisa da minha história familiar, o que me ocupou durante anos depois de o meu pai ter morrido. Simplesmente apaixonei-me pelos factos, em detrimento da ficção ou lá o que os poemas são. Mas passado algum tempo a poesia voltou a insurgir-se e apercebi-me de que conseguia escrever poemas muito curtos.
Ao mesmo tempo, deixei de fumar e pensei: “Ora, já que larguei a escrita de poesia, também posso deixar de fumar,” porque antes para me concentrar tinha necessariamente de fumar. Investigar a história familiar não requer concentração. Depois, quando voltei à poesia, comecei por escrever poemas curtos, com cinco versos, e gradualmente os poemas começaram a ficar um pouco maiores.
JF: Porque deixou de fumar? Ocorre-me o seu verso: “Some of us are a little tired of hearing that cigarettes kill”.
Bom, sim, lá no fundo ainda sou fumadora. Não é uma coisa que faça bem, mas eu estava viciada. Tornara-se cada vez mais difícil viver num mundo “não-fumador”; eram tantos lugares onde não se podia fumar. A primeira vez que tive de sobrevoar o Atlântico sem fumar, fi-lo sem qualquer aviso. Era uma companhia aérea canadiana e de repente disseram que era proibido fumar. Fumei cigarro atrás de cigarro no aeroporto, até ficar enjoada, embarquei no avião e tomei um Valium. O comprimido não me pôs a dormir mas distraiu-me daquilo. Além disso, os meus netos estavam preocupados comigo. E adquiri uma espécie de desprezo por mim mesma por ser uma viciada tão patética, uma vítima do meu vício. Não queria estar sempre a entrar em salas a pensar quando é que ia poder fumar outro cigarro. Preferia pensar noutras coisas. Então deixei de fumar aos poucos.
JF: Referiu há pouco que prefere escrever sobre factos do que escrever sobre a ficção, ou o que quer que os poemas sejam, mas muitas vezes os seus poemas têm origens históricas... origens que podem vir a dar dores de cabeça aos críticos do futuro.
[Risos]. Lembro-me de um estudante que me escreveu a colocar questões sobre um poema que eu tinha escrito no Lake District. Mencionava duas pessoas para quem a escrita constituía uma tarefa difícil: uma era a contista neo-zelandesa Katherine Mansfield, que morreu de tuberculose, e à outra chamei simplesmente Mary. Não sabiam quem era a Mary, e eu respondi: “Não é necessário saberem quem era; o poema tem informações suficientes”. Tratava-se de uma poetisa neo-zelandesa muito obscura que tinha artrite nas mãos e que, por essa razão, sentia dificuldade em escrever. Mas não interessa; podemos usar a imaginação para isso.
JF: Sim, os críticos detestam ter de usar a imaginação. [Risos]. Na mesma entrevista menciona o modo como passou “do formal para o coloquial”.
Acho que isso advém de estarmos mais relaxados e descontraídos. Quando alguém começa a estudar belas-artes, começa por aprender o básico, desenha em perspectiva e tudo isso e, mais tarde, pode fazer uma série de coisas bizarras, como o Matisse.
JF: Foi essa a afirmação que mais me interessou: “Remeto muitas vezes para alguém como Matisse, que se tornou muito mais relaxado e rudimentar. É preciso aprender a desenhar, ficar a conhecer todos os equivalentes poéticos da pintura, as coisas da métrica, as técnicas, e depois de termos passado por isso, deixamos de ser tão rígidos.” Como é que descreve esse processo de descontracção. Não implica pôr de lado a técnica...
Não, resume-se a descontrairmos. É algo em que reparo quando leio os meus primeiríssimos poemas, escritos na Nova Zelândia. Por exemplo, não usava abreviaturas e escrevia qualquer coisa como “You do not answer”, enquanto se estou a falar coloquialmente diria: “You don’t answer”. Esse tipo de coisas. Tive uma educação clássica; com o latim e o grego antigo temos de saber a gramática rigorosamente. Escrevi um poema chamado “The Prize-winning Poem” [“O Poema Premiado”], numa altura em que fazia parte do júri de um concurso de poesia, e um dos versos era: “The poet will be able to spell” [“O poeta não dará erros ortográficos”] [Risos]. Acho que temos de saber escrever bem as palavras. A maioria das pessoas não precisam; têm computadores. Claro que o computador pode escrever a palavra errada e não aquela em que tu estavas a pensar. Há tantas palavras parecidas, é preciso assegurar que estamos a escrever a palavra certa.
JF: Há alguma coisa de que não goste na poesia? Uma palavra? Uma figura de estilo? Clichés que tente evitar?
Há coisas que não preciso de tentar evitar porque também nunca as faria. Não sinto uma inspiração particular em escrever poesia que seja integralmente poesia para ser recitada ou representada, sempre quis que fosse alguma coisa que se pudesse ler na página. Não me agradam algumas das formas poéticas mais espinhosas, essas que dão às pessoas nos cursos de escrita, o triolé, a sextina ou outras do género. São úteis enquanto exercícios, mas não me interessa lê-las. Certamente nunca mais quero voltar a ler outra sextina.
JF: Há palavras ou figuras de estilo de que goste em particular?
Sim, faço questão de acertar no ritmo. Não na métrica, no ritmo. A diferença entre ritmo e metro é tão profunda. Não é possível descrevê-la ou falar sobre ela; só podemos indicar alguns exemplos de vez em quando. Se o ritmo parece estar um bocado desfasado, isso contribui para o gozo do poema. Alguns isabelinos que escreviam segundo modelos que derivavam efectivamente dos sonetos italianos limitaram-se a adaptar um pouco esses modelos, e os poemas ficaram prazenteiramente irregulares. Depois temos os editores vitorianos que quiseram modificá-los e restaurá-los àquilo que achavam que os poemas deviam ser, mas que não era o que os poetas tinham ideado. Há coisas que não me largam a cabeça, ritmos estranhos. Ouço o ritmo na minha cabeça durante todo o dia enquanto caminho. Componho imenso enquanto passeio pelas ruas ou pelo bosque quando não está a chover. Assim escuto o que estou a escrever na minha cabeça. Penso: “Ah, alguma coisa está mal aqui, temos uma sílaba a mais.” Tiro o meu caderninho ou lista de supermercado do bolso e altero o verso.
JF: A escrita de um poema segue sempre um mesmo processo?
É variável, mas geralmente começa com uma frase ou um verso que me vem à cabeça. Toda a gente diz isto, e não raro esse verso acaba por ser o primeiro do poema, mas não necessariamente. Simplesmente faz-te iniciar o trabalho. E depois deixas o resto a cargo do criador semi-consciente dentro da tua cabeça. Muitas vezes chega um momento em que tens de acabar o poema, o que tem de ser feito com mais concentração e de um modo mais artificial. O melhor que há a fazer é ir para a cama e voltar a olhar para o poema de manhã. Acordo de manhã e penso: “Ah, é isso!”
JF: E o processo de tradução?
É uma boa solução para quando estamos encalhados, trabalhar a partir do modelo de outra pessoa. Não é preciso fazer mais que tentar encontrar as palavras. É muito bom para aprender uma língua. Quando estava a aprender romeno, a única poesia romena a que tinha acesso era a de amigas que tinha conhecido na Roménia quando lá estivemos. Fiz três viagens à Roménia e elas deram-me os seus livros. Estava a aprender a língua e era isso que usava como material de aprendizagem. No caso de uma língua em que temos poucas competências, a poesia é boa porque não é preciso traduzir todos os poemas, basta pegar naqueles que nos dizem alguma coisa e que não são demasiado difíceis. Por fim, elas conseguiram viajar até cá (a Grete Tartler e a Daniela [Crasnaru]), para que pudéssemos falar sobre a sua poesia e para que a Daniela me pudesse mostrar coisas que tinha escrito em segredo. Era muito perigoso.
JF: Tinha ideia de que os poemas tinham sido escritos em código.
Sim, elas escreviam em formas que eram de certo modo cifradas e obscuras. Os leitores mais astutos conseguiriam apanhar as referências, mas nunca era nada de específico. A Daniela [Crasnaru] começou por escrever poemas muito abertos sobre o muito frio que se sentia, sobre a falta de aquecimento central nos edifícios, a falta de café – coisas que as autoridades não queriam que os estrangeiros ouvissem – e isso era muito perigoso. Ela escondeu estes poemas num celeiro, numa caixa de cebolas, e depois da derrocada de Ceausescu pôde acabá-los, e eu traduzi-os. Deu a essa recolha o título Letters from Darkness [Cartas da Escuridão], porque tinham sido escondidos na escuridão do celeiro, mas também na escuridão da ditadura.
JF: Sabe muitas línguas.
O romeno é uma língua românica, como o francês e o italiano, mas tem mais elementos de outros idiomas. Sei italiano e consigo mais ou menos ler espanhol se me vir obrigada a isso. Mas quando não somos falantes nativos, é fácil ficarmos confusos. A minha mãe era bastante boa a espanhol, tinha viajado por Espanha, e deu-me os livros dela, mas como eu estava muito familiarizada com o italiano (passei muito tempo em Itália), não queria misturar as duas línguas. Com o romeno acontece o mesmo; é fácil metermos o pé em falso. Sempre tive grande apetência para as línguas quando era nova. Decidi que, quando tivesse 30 anos, ia saber seis línguas.
JF: Quantas sabe?
Algumas surgem e desaparecem! Aquelas que aprendi formalmente são o inglês e o francês, que estudei desde muito cedo na escola, e sei latim e alemão (porque tínhamos um professor de alemão muito bom). Assim são quatro. Quando fui para a universidade, comecei a aprender grego antigo; na Nova Zelândia, não se ensinava grego na escola. Na universidade em Wellington começavam logo desde a primeira lição, para compensar pelo tempo perdido; na primeira semana, estávamos a ler Platão. Depois aprendi italiano só pelo gozo; vim para a Inglaterra num navio italiano em 1963; e, de qualquer maneira, pus-me a aprender italiano, em aulas nocturnas. Mais tarde, romeno.
JF: A poesia perde-se com a tradução?
Podíamos estar aqui uma semana a discutir isso. São tantas as formas de abordar a tradução. Uma romena que eu conheci na Nova Zelândia perguntou-me qual era o meu método de tradução. Respondi-lhe que consistia em ler o texto, traduzi-lo e tentar torná-lo legível. Não queria ofender nenhum autor interpretando mal a sua poesia. Por outro lado, com o latim as dificuldades eram menores; não há ninguém com quem debater a tradução. Os autores já estão mortos há algum tempo [Risos]. Esta senhora estava interessada no Seamus Heaney, que tinha traduzido um poeta romeno para uma antologia, e ele não sabia romeno, pelo que terá usado a versão de um outro tradutor. Penso que isso não é tradução, devia haver outro nome para isso. É apenas criar... não sei o que lhe chamar.
JF: Compilou algumas antologias (Oxford Book of Contemporary New Zealand Poetry (1982), Faber Book of 20thCentury Women's Poetry (1987), e The Oxford Book of Creatures ,com Jacqueline Simms, 1995). Quais foram os critérios que ditaram a sua selecção de poemas?
É difícil, porque não devemos incluir só os poemas que julgamos serem bons; aqueles de que gostamos. Temos de incluir aqueles que são bons, quer gostemos deles ou não.
JF: Qual é a diferença?
De certo modo, temos de pôr as emoções de parte, e aceitar que se trata de um poeta ou autor muitíssimo respeitado; pode não ser o meu tipo de poesia, mas estas parecem ser as qualidades que as pessoas valorizam nele ou nela, pelo que tem de ser incluído na selecção. Fiz uma Antologia de Poesia Neo-Zelandesa em 1982 e alguns dos autores que escolhi não faziam exactamente o meu estilo.
JF: Que estilo é esse?
Não tenho uma lista, os entusiasmos estão sempre a mudar. Quando era jovem lia os poetas que estavam na estante do meu pai, no quarto que me servia de quarto de dormir; ele tinha livros de Blake e Milton, e eu apaixonei-me por eles. Mas não são poetas que hoje passaria muito tempo a ler. Simplesmente na altura entusiasmaram-me. Os poetas modernos que lia na biblioteca da escola hoje em dia já não são modernos. [Risos]. Adorava o [T. S.] Eliot; quando tinha 15 anos, agradava-me o seu tom desencantado.
JF: Disse que teve de deixar algumas poetas de fora, como a Grace Nichols, no 20th Century Women's Poetry?
Ah, sim, isso foi porque essas poetisas eram demasiado jovens; o meu editor, Craig Raine, que era muito autoritário, deu-me uma data-limite para a inclusão de autoras.
JF: Ele era muito interventivo?
Sim, tinha tendência a bater o pé. Quando pus mãos à obra nessa antologia,ele disse: “Bom, é claro que vai começar com Emily Dickinson”. E eu disse: “Como? Isto é poesia do século XX.” Ele respondeu: “Ah, bem, no fundo ela era uma poetisa do século XX”. [Risos]. Eu disse: "Nada de Emily Dickinson”. E ele disse: “Tudo bem, se não a incluir tem de pôr vinte poemas de cada uma das grandes três” – estava a referir-se a [Sylvia] Plath, [Elizabeth] Bishop e Marianne Moore. Eu perguntei: “Porquê vinte poemas?”. Já viu os poemas da Marianne Moore? São enormes! [Risos]. Convenci-o a aceitar vinte páginas, não vinte poemas. Mas sinto-me muito embaraçada por ter sido obrigada a incluir tanto da Plath: já toda a gente tinha sido exposta à Plath, tinham Plath a sair das orelhas. Todas as antologias estavam cheias de Plath, já não precisamos de mais. E depois ele lia as minhas selecções em voz alta e punha um sotaque cómico quando chegava àquelas de que não gostava. [Risos]. Uma espécie de sotaque australiano ou americano de faz-de-conta. E eu dizia: “Ah, não, não, tem razão, são terríveis, são péssimos”. Ainda disse que eu não podia incluir todas as poetisas jovens. “Tem de lhes dar tempo para florescerem e atingirem a maturidade completa”.
JF: Não é bom tentar adivinhar quem vai ter sucesso?
Sim, gosto de poder dizer que o tinha previsto. Por exemplo, uma das poetisas mais jovens nessa antologia era a Selima Hill; ainda não tinha publicado grande coisa, mas tinha uma personalidade e uma voz poéticas extraordinárias. E eu conseguia ver isso. Agora olhe-se para ela, está a sair-se tão bem. Como sou uma grande admiradora dela, acho que foi bem fisgado. Não conhecia uma boa parte das poetisas nessa antologia, as norte-americanas. Uma amiga norte-americana deu-me boas sugestões, como a Josephine Miles, outras li na biblioteca e estudei por mim mesma. Mas hoje em dia não consigo manter-me a par da poesia recente.
JF: Faz o mesmo com os poetas britânicos jovens?
Vejo muita da poesia que vem a lume, mas um bocado ao acaso.
JF: Começou a publicar relativamente cedo, ao contrário de outras poetisas.
Acho que não comecei a publicar muito cedo, em comparação com homens da minha idade que não passavam tanto tempo a criar os filhos. Bom, segundo alguns padrões, sim, era nova. Algumas das poetisas que admiro ou que vim a descobrir só publicaram livros quando estavam na casa dos cinquenta, como a minha amiga Lauris Edmond. A minha primeira recolha foi publicada na Nova Zelândia, quando tinha 30 anos, logo depois de ter vindo viver para aqui, e depois usei metade do conteúdo desse livro para a minha primeira recolha publicada no Reino Unido.
JF: Os seus editores intervinham muito?
Nem por isso, depende do editor. Recebi algumas sugestões quando estava a reunir os poemas de Tigers. Falei com o George Macbeth, que tinha sido membro do grupo em que eu participava. Era um amigo, por isso fomos a um pub e eu perguntei-lhe que poemas devia ir buscar à minha recolha da Nova Zelândia. Ele não perdeu tempo: percorreu os poemas e foi-os marcando com um visto ou uma cruz. Depois disso, editores... não eram muito picuinhas em relação a coisas precisas, mas diziam: “não gostamos deste”. Sentiam-se sempre obrigados a rejeitar alguma coisa...
JF: Para mostrar que estavam a trabalhar. [Risos].
Sim, era o trabalho deles! Diziam: “este não nos agrada”. Nunca diziam: “Não me agrada”; era sempre no plural. Isto foi na Oxford University Press, e eles afirmavam: “Alguns de nós não acham que este poema funcione muito bem”. E eu respondia, “Sim, tem razão, pode excluí-lo”. Noutras ocasiões, defendia a inclusão dos poemas. Houve um que eles não consideravam… Alguns dos poemas eram “pouco oxfordianos”. Não cumpriam o estilo. Havia um poema chamado “A surprise in the Peninsula” [“Uma Surpresa na Península”], que é acerca de… bom, não é exactamente um sonho, é mais uma fantasia que me veio à cabeça. Foi escrito nos anos 60, quando havia imenso terrorismo em Aden (bom, ainda há). Daí irrompeu uma narrativa que os editores não entenderam; queriam material mais terra a terra. Eu disse: “Foi publicado na New Statesman e as pessoas gostaram…” Se as outras pessoas gostavam dos poemas, eu tendia a ir atrás do juízo dos leitores. Por fim a minha editora, a Jacky, disse: “Está bem, vamos incluí-lo”.
JF: Também leva os seus leitores em consideração?
Levo-os em consideração, mas em termos negativos. Acho que não os quero aborrecer, repeli-los, não quero escrever nada que leve as pessoas a dizerem: “Oh não, outra vez esta velha cantiga”. Mas o meu editor actual, o Neil, não interfere em nada do que eu faço. Acho que fica satisfeito por não ter de editar nada, porque alguns dos seus autores dão-lhe muito que fazer nesse campo.
JF: O Neil foi muito simpático, respondeu-me assim que escrevi.
Ah, sim, é mesmo. Já o entrevistou?
JF: Não, mas gostava muito de o fazer.
Sim, devia entrevistá-lo! Conheço-o desde que ele tinha 22 anos ou coisa parecida, era muito novo, por isso fico muito contente por ele se ter saído tão bem [Risos].
JF: Mudando de assunto, parece recusar o rótulo de “mulher escritora”. Define-se como “ser humano poeta”.
Sim, às vezes esse assunto leva-me a ficar defensiva. Nos velhos tempos, as poetisas eram postas de parte. Certa vez, uma aluna minha assinou um dos seus poemas com as iniciais, e eu disse-lhe: “Não, escreve o teu nome. Escreve Margaret, para eles saberem que é uma mulher”. Ela tinha medo de o fazer. Isto é uma pena. Eles têm de se habituar à ideia de que as mulheres também escrevem poemas. Tu tens de defender a tua posição. Mas, hoje em dia, mais de metade da lista da Bloodaxe é composta por mulheres. O Neil publica mulheres de todo o lado; pega nelas assim que as descobre; se vê uma edição norte-americana ou australiana de alguém que admira, faz uma edição britânica. Isso tornou-se normal, mas quando eu estava a começar a editar essa antologia nos anos 80, fui fazer uma leitura algures nas Ilhas do Canal e um homem na audiência disse: “Vai ser um livro muito fino, não vai? Onde estão as mulheres poetas?”
JF: Na sua geração, havia muito poucas poetisas.
Na minha geração, havia muito poucas. Havia a Elizabeth Jennings, que eu lia, estava nas antologias New Lines. Havia a Patricia Beer, uma poetisa maravilhosa e uma mulher muito divertida. Ambas eram mais velhas do que eu. Na altura a Jenny Joseph escrevia….
JF: Talvez a Stevie Smith?
Sim! A Stevie Smith ainda estava viva! Mas ela era excepcional! Não encaixava em nenhuma categoria. Não havia ninguém igual a ela. Fui a uma leitura que ela deu. Bem, fui a várias leituras dela [Risos]. Uma vez paralisei enquanto estava a conversar com ela, estava tão intimidada! Não conseguia pensar em nada para dizer! Fiquei ali parada. [Risos]. E mais tarde fui ao seu funeral. Ela morreu tão nova... sim, era excepcional. Não era uma pessoa que pudesse encontrar muito nos círculos em que me movia. Já era tão famosa. Mas fora disso havia pessoas mais velhas do que eu que ainda não tinham publicado nada: a U. A. Fanthorpe tinha acabado de começar; a Elizabeth Bartlett era outra que não tinha publicado muito e que estava na casa dos cinquenta. Gradualmente – não exactamente a geração seguinte, mas mulheres um pouco mais jovens do que eu… a Wendy [Cope], que conheci quando era aluna num curso que leccionei nos anos 80. Mas a maior parte delas são mais jovens, sim.
JF: Sabe porque será?
Não sei, acho que se devia aos editores e só isso; eram tão desdenhosos e arrogantes. Todos esses editores com diplomas de Oxford, em editoras como a Faber, Chatto, MacMillan e outras. Simplesmente não lhes agradava publicar tantas mulheres. E as mulheres eram desencorajadas, sentiam que estavam a escrever sobre as coisas erradas, sobre as suas famílias, as crianças, o parto e o sexo.
JF: Num dos seus poemas, “Leaving the Tate” [“A sair da Tate”], parece rejeitar a ideia de que a poesia deve ser sobre “isto” e não sobre “aquilo”. O verso é assim: “Art's whatever you choose to frame” [“A arte é aquilo que se decide enquadrar”].
Fiquei muito contente com esse verso! Surgiu-me do nada! Estava num júri de um concurso de poemas baseados ou numa obra de arte da Tate (hoje chamada Tate Britain) ou na experiência de ir ao museu. Éramos três no júri e também nos foi pedido que escrevêssemos cada um um poema. Eu escrevi um poema sobre a experiência de ir à Tate, que, de qualquer forma, era uma coisa que eu fazia com frequência. Não ficava longe do sítio onde eu trabalhava, podia lá ir à hora do almoço. O simples acto de vaguear por um museu é suficiente para afectar o modo como olhamos para o mundo quando saímos. Tudo parece estar dentro de molduras, de quadrados, quando olhamos para as coisas! [Risos]. É claro que “a arte é aquilo que se decide enquadrar” significa: qualquer coisa para a qual queiramos olhar com atenção é arte. Tive uma discussão com outro membro do comité. Uma romancista. Quem foi? Antonia Byatt. Ela estava no júri de um concurso do TLS. Havia outros três membros e eu disse: “Olha, aqui está um bom poemazinho”. Era um poema curto, cerca de seis versos. E ela disse: “Chama a isso um poema? Invento melhores imagens em qualquer página de ficção!” Eu respondi: “Bom, sim, mas este tem espaço branco à volta”! Se olharmos para algo rodeado de espaço branco, olhamos com mais atenção. Isto é a arte, é aquilo que decidimos enquadrar. É a capacidade de escolher aquilo para onde queremos olhar [Risos]. Fiquei contentíssima por me ter lembrado desse verso antes que fosse tarde de mais [Risos].
JF: A última pergunta pode ser… tem gostado de ser poetisa?
Ser poetisa é uma espécie de formulação dúbia, porque nos velhos tempos as pessoas diriam: “Não pode dizer que é poeta, isso é como dizer que é um génio”. Há muitos anos fui casada com um poeta, e ele e os seus amigos diziam simplesmente “I write verse” [“Escrevo versos”]. Agora toda a gente se afirma poeta e até fazem menção disso nos passaportes. As pessoas, muitas vezes crianças na escola, perguntam-me: “Quando é que decidiu ser poetisa?” Explico-lhes que nunca decidi ser poetisa, não era uma coisa que eu achasse que podia vir a ser. Quando tinha seis ou sete anos, escrevia pequenos poemas e rimas - isso era criar um poema, não era ser isto ou aquilo. Às vezes encontro pessoas nas lojas do bairro, que me dizem: “Ah, você é aquela senhora poeta!” Apareci no jornal local quando dei uma leitura na livraria, foi por isso que me reconheceram. O único momento em que alguém pode efectivamente dizer que é poeta é no próprio momento em que está a escrever… certamente que agora, neste momento, não estou a ser poetisa. No meu passaporte diz… ah, não, hoje em dia não é preciso indicarmos a ocupação profissional. Quando tínhamos de o fazer, eu achava que era escritora e o meu contabilista considerava que eu era autora, o que fazia com que eu fosse autora na minha declaração fiscal e escritora no meu passaporte, mas nunca diria poetisa, isso para mim seria um bocado pretensioso. Mas desfrutei dessa vida, sim. Uma das melhores coisas é ficar a conhecer outros poetas; um privilégio enorme. Mas tem sido uma vida simples. Ninguém enriquece a escrever poemas, mas lá consegui sobreviver, e valeu a pena fazê-lo.
Tradução de João Brandão