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Vários, Mochila

Inéditos

Vários, Mochila

Maria S. Mendes

 

Às vezes acordamos felizes, a luz borbulha, escorre

um novelo de cabelos sobre os nossos joelhos e bocas

 

Sobre as grandes flores fulvas do linho, desbotadas

a manhã desaba

uma canção alaranjada

 

Um trilho desce

pelas pregas dos lençóis nas tuas nádegas

e eu fico a pensar na forma sonolenta

desses pequenos budas divertidos na penumbra

sorrindo com o picotado de um arrepio

na tua pele

que me percorre

    pupilas, papilas, pálpebras

como um comboio cicatrizando, desgovernado

um corredor na superfície lunar

 

Eis um corpo apeado na estação da fadiga

que se assemelha tão completamente à morte que me assusta

mas afasto essa ideia com uma torção de pensamento

como se guinasse o papel de um papagaio contra o vento

e me apaziguasse o farfalhar berrante

da gargalhada de cor que então estala

 

Um rilho de dentes usurpa-me a atenção

por um segundo e insinua que respiras

é como uma conversa de lenhadores ao longe

que meditassem nas redondezas de um incêndio

nos mil caminhos dos toros

quando se auscultam com os dedos os seus veios nudosos, crestados

cheios de gretas revistadas

pela obscenidade da fuligem

 

Quando te viras, o teu braço inerte

é uma cauda húmida de tigre

rosnando ainda um pouco impaciente

pelo furor do combate no liame da savana

e pesa 

numa toalha sudorosa sobre a minha barriga 

com uma piscina ao centro que a cratera 

do umbigo ancora

 

E então observo como a casa se forja

presente

desde a sua própria moleza

penso em não sair nunca à rua, em escorar

este predar sonâmbulo do amor na arena da cama

fazer desta besta intransigente

gato de apartamento

 

Mas e se saíssemos? A casa

arfaria ainda no nosso encalço

toda a rua molharia com os seus lábios absortos

o fio do desejo até caber

numa agulha de tempo

e coser o mundo de lés a lés

então instantâneo, sucedâneo

da própria grandeza

 

E nada nos seria estranho

nem os muros lavrados pelo musgoso alento de um inverno insistente

nem os quintalejos em ruínas

nem a bruma que no poço grita 

uma rouquidão de sede

nem a pasta de tripas de uma pomba jovem

caída de um telhado, extasiada com a aurora

nem as notícias da neve

nem as pessoas que andam com os punhos muito cerrados nos bolsos das calças

como se espremessem dois corações

um de cada lado

e sentissem a sua calda a descer-lhes pelas pernas

até aos tornozelos

e seriam os nossos, corações

desses de comer, caramelizados

maçãs, manhãs uma da outra

 

Se saíssemos, a casa 

cantaria no nosso encalço


 

Por vezes, na noite, abre-se um pequeno espaço entre dois lábios

vê-os, tão ressecos, zurzidos pelo corrupio do breu, parecem

só o torpe poisio onde a chuva já não poisa

com as suas ínfimas gretas e a sua aridez tão fina

a tombar de sede, olhando e olhando

esse verde estupidamente polido dos campos em volta

 

O vapor poisa nos lábios com unha de insónia

é a cidade calada a varrer a penugem irrisória

transparente quase, que se te instala nos dedos

te escancara um pouco as articulações para colher 

que afago, diz-me, se o teu nome em mim também demora

a caber no caudal da língua com que em tanto me tenho

nos tenho, como essa chuva a batente, fracassado

 

Se acordasses agora, enquanto te vigio e vejo

no velcro da pele um aglomerado de sinais 

tão perfeitamente justapostos que se diria conterem

todas as declinações possíveis

de todas as línguas possíveis

serias quase parada, penso, seria quase triste ver-te a ranger como uma porta gelada pelo frio

fitando e fitando o mundo a que abre

sem ter arte de passo, passo de passagem

mas ainda assim eu sei

que um Olho terrestre teceu um condomínio para o meu desejo

um acampamento todo gene todo enredo todo míngua

para acoitar estes dedos nómadas às vezes

encalhando com a ilha 

que um geógrafo cego mapeou

 

Ouve-se o relinchar de uma inútil campânula no escuro, ouve-se

o seu clangor reptando pelas costas do vidro 

por onde a luz plana um farrapo de penúria

auscultando o pulso do quarto, como 

uma leitura rente ao parapeito do leito, lento linho, coalhado

na minha boca, aranha definindo o redil

onde um coração tão estreito não cabe, não cabe

e definha, e abandona

um pó estrelado a rebrilhar no ar

 

Então

sinto o corpo a levedar no negrume e peso-o

com a sua sintaxe estranha, a sua inerte, turva sageza

e não consigo decifrar o braile dos lençóis a caligrafia da insónia

é como se a tua língua percorresse à pressa os seiscentos

e cinquenta e um quilómetros que nos apartam

e eu podia ficar a dar nós nas cordas da loucura a noite toda

que a canção continuaria a não soar, só ar, incombustível

eu continuaria a não saber dizer-te o que em mim te procura

no que em ti em mim te procura

a cidade continuaria e continuaria a ruminar

a sua terrível paciência

quando era urgente, percebes?, urgente

acordar ou não acordar


Miguel Filipe Mochila nasceu em Évora, em 1988. Tem colaborado com a imprensa em matéria cultural relacionada com as literaturas hispânicas, de que é investigador. Traduziu autores como Julio Cortázar, Juan José Saer, Samanta Schweblin, Blas de Otero, Nicanor Parra, Joan Margarit ou Luis Alberto de Cuenca. Além de poemas publicados em revistas e fanzines, publicou em 2016 Tempo da impaciência, na Artefacto, editora que prepara actualmente a publicação do seu segundo livro.