Caddy
Maria S. Mendes
Caddy
Pensei imaginar-te outra vez nua entre
coisas brancas panos nuvens ovelhas e
camarinhas frutos pequeninos que os teus
dentes brancos ligeiramente inclinados
para a frente para um beijo para mim
trincam e tu tapas a boca com a mão
e cospes caroços desenhas nos lábios
um sorriso de vestal apanhada pelo sol
e tu à procura os meus olhos rasos
de assombro fundo rasos a sobrevoar-te
dentro do teu corpo maculado de ternuras
de ferida de raivas surdas de mínimos
tumores de marcas ausentes de todos
os amantes que tu não quiseste que
te quiseram morder tu não deixaste
até um dia te cansares de ser virgem
chegares a mim a tremer tu à procura
eu a detestar-te por alguém tinha de
haver alguém a quem detestar no teu
lugar em vez de ti se nem a mim ao fim
de contas tu não deixaste eu não pude
nunca tocar eu tenho os dedos brandos
mas só o silêncio grande os teus olhos
rituais mesmo assim mesmo quando
coloquei a minha cabeça no teu colo e tu
quase acreditaste e eu a querer-te vingando-
-te cheiro a primavera pura nas tuas costas
dentes brancos frutos tu negaste nós as duas
a desejar que fosses talvez menos bela e tu
de desdém a beleza que te gastava tu sabias
e sabias e resignavas-te e eras um adorno
um risonho sacrifício de castidade passavas
a fingir que eras mais alta do que eu
eu consentia tu eras mais alta do que eu
e todos os que consentimos nos lembramos
de ti assim e fazem-se grandes rodas
de choro por ti e eu fico só choro-te só
a rasgar os retratos onde não apareces a
saudade dos teus gestos rendados das tuas
veias em teia à volta de dedos um rosário
de fios de lustro é assim que eu me lembro
de ti e os deuses olímpicos e os serafins
melindrados e todos quantos se lembram
de ti e ainda que se calhar nem sempre
tivesses nas mãos a claridade das violetas
eu recordo-te agora tinhas de certeza
violetas nas mãos quando foste embora
eu vi porque lá fora ainda havia dia.
Barroco da Penha de França
É densa a escuridão que me separa
das minhas traseiras e o ar opaco
no terceiro andar. Porém é facto
que sempre enfrento a simetria rara
entre o espelho mágico do WC
do vizinho e o quarto a cuja janela
escrevo. Vejo-o a ele amiúde em pêlo
sendo dia, só que à noite me vê
eu: no fronteiro vidro coço minha
cabeleira e cogito versos esquerdos
sem entender que oposta e má menina
em plano de Velásquez me persegue.
Não nego seduzir o que me impede
se quanto me limita me ilumina
Ribanceira da Vamba
Eu
não
quis
da terra
nada salvo
amor nada
me acudiu
me lançam da frágua
coitada resvalo a vertigem lavro
marco a fundo pele que na tua
outrora subia eterna sacudi-
da agora entre tojo ruim me
esfacelo raso mui bicudas
pedras daninhas ervas eu própria
dano sem socorro mouro meu morro e mal
digo: pestilenta para sempre detestável a beleza
das fêmeas do ar da paisagem de que jamais vos
venha cura algum ungir pelos tempos fora este
fétido bafo de má indústria este tão pouco clemente
excesso de imponência este ser de cerco e corrente que
cerra este rondar de rapina por cima de penedos este
para sempre só
e solo inenar-
(r)ável até à agua.
Este fruto o meu corpo
e dedicada, disse ela,
“será branca como a neve” por isso
ruídos de espinhos por isso este medo
pavor de crescer de ver
o corpo mudado em formas de pousar
as mãos curvas minha pele branca
como a neve por isso
o caçador ambíguo por isso
o coração terno por isso
o fígado colérico por isso
o tenro fruto alvo
que atravessa a úvula
dobrada de medo adormeço
abraçada ao abismo deslizo
na risca quebrada no espelho
sou a virgem a velha o fio
do punhal o caçador na floresta
a mãe à janela a lua a brilhar
a bruxa a estragar o fim
da festa
qual coisa carnal vulgar
rosa escura rosa rubra rosa
medusa brava a gritar
na noite um dom
todavia me unge
se insinua por isso
porque não amor
caçador bom
quem parta comigo
este fruto o meu corpo
tomá-lo e comê-lo
que trago há tanto tempo
este sumo o meu sangue
tomá-lo e bebê-lo
que guardo por abrir faz
tempo no castelo
no trinco da garganta
na torre da neve
cujo morro inatingível
retoco com a boca, me movo
desengasgo, solto, escorro.
Margarida Vale de Gato, pré-lançamento de Mulher ao Mar e Grinalda.
Margarida Vale de Gato está numa relação aberta com a poesia. É tradutora literária, professora e investigadora na FLUL, nas áreas de Estudos Norte-Americanos e Tradução Literária. Tem publicado ensaios e livros, principalmente sobre Edgar Allan Poe. Publicou poemas em revistas e antologias de repercussões homeopáticas, e os livros Lançamento (Douda Correria, 2016) e Mulher ao Mar (Mariposa Azual, 2010), cuja terceira edição, Mulher ao Mar e Grinalda, é de 2018.