Excerto de “As duzentas mulheres de Miguel Torga”, Alexandre O’Neill
Maria S. Mendes
Excerto de “As duzentas mulheres de Miguel Torga”
Dentre esses poemas, em relação aos quais se tem a impressão de que não podiam deixar de ter sido escritos, poemas que aos murros bateram – necessidade e urgência – às portas dos poetas seus autores, conto, como um dos meus predilectos, o poema “Lezíria”, de Miguel Torga. É um objecto mágico que há mais de trinta anos me acompanha – e devo dizer, com toda a fraqueza, que da poesia portuguesa de hoje poucos são os talismãs que trago comigo. Gostava de vos fazer testemunhas e fruidores dos poderes de um tal objecto, mas não sou exegeta, porque não posso e, se pudesse, já não quereria. A exegese literária, hoje, é um trabalho científico que não se compadece com a passarinheira palpitação dos amadores. Apesar de tudo, gostava de vos falar desse meu talismã, a “Lezíria”, antes de vo-lo transcrever no final desta crónica. Transformado na coisa amada, sempre posso, como amador, falar da coisa em mim consubstanciada, falar de mim por mim. Posso?
Na distância, que começa por ser uma distância fisicamente espacial, a que o Poeta se situa das duzentas mulheres que mondam, reside, para mim, a principal linha de força desse extraordinário poema. A avaliação do número de mulheres que trabalham ali, naquele momento – duzentas – é uma avaliação por alto, mas de quem está habituado a olhar e a ler o campo e sabe o número de componentes que um rancho de mondadeiras mais ou menos pode ter. Por outro lado, "duzentas" não é substituível por “muitas”. “Muitas” diria eu, que não sei ler o campo. “Duzentas”, sendo uma avaliação por alto, é, seguramente, bastante certeira. “Duzentas” não surge por acaso. Pouco provável, também, que tenha sido por informação prévia. “Duzentas mulheres” ganha, assim, corpo e presença concretos. De qualquer modo, a distância fica desde logo marcada pela olhadela englobante do observador. E acentua-se, a seguir: “Cantam não sei que mágoa / que se debruça e já nem mostra o rosto”. E aqui, a distância, de meramente espacial, começa a passar a distância humana, “cultural”: “... não sei que mágoa”. Claro que Torga, embora não distinguindo, à distância, as palavras do canto, sabe muito bem que mágoa cantam as mondadeiras, mas, por uma operação de subtil (e amarga) ironia, toma deliberadamente outra distância em relação a essa mágoa, situando-se como o espectador que na realidade é. E fica, assim, criada uma tensão intolerável que impecavelmente levará o poema ao seu desfecho, no qual é reiterada, de maneira magistral, a irremediável distância que só a simpatia pode tentar vencer: “Cantam baixo e parece / Que na raiz humana dos seus pés / Qualquer coisa apodrece”.
“Parece...”, “Qualquer coisa...” – elementos marcadores de ainda maior distância, até à diluição da tensão nesse terrível distanciamento, nessa separação final contida no definitivo “... apodrece”.
A charneira entre o que podemos considerar, grosso modo, o enquadramento expositivo deste breve poema e a sua resolução dramática, é um verso que, como um nó, liga destinos assaz diversos a um comum destino: “Cantam o Norte e o Sul de uma só vez”, verso no qual parece reflectir-se a cruel realidade do mercado do trabalho braçal no nosso país: ir buscar mão-de-obra – neste caso para o Ribatejo – aonde ela for mais barata. E toca a migrar sazonalmente...
A dicotomia espectador-agente, que Torga não enjeita e que constitui, até, um dos motores da sua criação, é vivida, neste poema, de forma exemplar, por um homem que, embora dilacerado, soberanamente se recusa à facilidade ditirâmbica ou ao frustre sentimentalismo.
E era este, por ocasião das homenagens ao Poeta, o pequeno objecto mágico torguiano que eu vos queria mostrar e que, sem mais extracções, aqui deixo transcrito:
Lezíria
São duzentas mulheres. Cantam não sei
Que mágoa
Que se debruça e já nem mostra o rosto.
Cantam, plantadas n’água,
Ao sol e à monda neste mês de Agosto.
Cantam o Norte e o Sul de uma só vez.
Cantam baixo, e parece
Que na raiz humana dos seus pés
Qualquer coisa apodrece.
Alexandre O’Neill
Excerto de “As duzentas mulheres de Miguel Torga”, de Alexandre O’Neill. Texto publicado em Já Cá Não Está Quem Falou (2007), ed. de Maria Antónia Oliveira e Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio e Alvim, 2008. Aqui publicado com autorização da SPA.