Pedro Homem de Melo, Joaquim Manuel Magalhães
Maria S. Mendes
Pedro Homem de Melo
Uma grande literatura não tem outra alternativa, para o ser, senão possuir um razoável conjunto de excelentes poetas secundários. Sem esses poetas não existirá um rico solo comparativo donde se podem alçar aqueles que, catalisadores dos modos mais fundos de uma época, encontram as palavras mais altas e os processos mais diferenciados para os enredar em poema. Os melhores poetas secundários povoam os espaços donde o poeta maior pode surgir, porque sozinho não o conseguiria, era-lhe preciso experimentar os mecanismos verbais que já encontra menormente tentados no poeta secundário. Contudo, este não é apenas ou sequer um mau proponente de versos. O que ele propõe pode ser do mais conseguido: a sua obra, porém, apresenta uma desigualdade de expressão, uma oscilação de critérios processuais, uma predominância do mau gosto verbal que contaminam a ocasionalidade de um ou outro poema magnífico. Ao mesmo tempo, os seus assuntos não se diversificam a ponto de alcançarem uma integração da variedade constitutiva do humano, nem se adensam de maneira a atingir a expressão de uma das bases essenciais da relação do homem com o mundo. São, sobretudo, excelentes executores verbais de tradições temáticas, sobre as quais exercem variações que se perpetuam pela sedução rítmica e verbal.
Merecem apreço estes poetas. São geralmente mais pacificadores da linguagem do que desencadeadores de perturbação e desequilíbrio inventivo. Enraízam na tradição os seus dizeres, quer essa tradição seja a mais longínqua na tribo, quer seja a expressão da continuidade do novo. Vivem muito mais da exploração temática, que se sente apropriarem com um processo já usado noutro local verbal, do que de dizerem o novo global onde as dicotomias organizativas são inseparáveis. Se exemplos nos fazem entender melhor, Almada Negreiros e Adolfo Casais Monteiro são desses poetas que secundam a explosão do modernismo pessoano, usando a sua tradição processual naqueles poemas onde mais longe nos levam nas suas afirmações temáticas específicas. Por outro lado, António Gedeão e Pedro Homem de Melo constituem esse outro eco de uma tradição processual que remonta ao uso da balada, do rimance, enfim, da prosódia dita popular. No âmbito dessa tradição nos propõem avanços qualitativos e alargamentos significativos no campo do sentido, do exprimido, do confessado.
Se alargarmos para fora do âmbito nacional estas considerações, alguns dos grandes poetas internos portugueses acabam por assumir uma nítida situação secundária em confronto com os padrões inventivos transnacionais. Para usar apenas um exemplo notório, a carga alteradora de António Maria Lisboa é claramente continuadora da actividade surrealista francesa, ainda que possa haver desempenhado no contexto português um ponto de mudança que desemboca na superior proposta de Herberto Helder. Este, tal como Pessoa em relação a outros contextos, acaba por enunciar uma diferença que ultrapassa esse âmbito contextual do surrealismo francês. A sua obra propõe, para lá das influências sobre ela exercidas, hipóteses novas que nunca constituem uma redundância processual, antes a situam num ponto onde apenas a nula difusão da nossa língua literária impede o seu desempenho de um lugar central na vanguarda europeia.
Como este, outros grandes exemplos poderíamos determinar no âmbito secular da nossa produção literária, enraizados embora numa pujante existência de numerosos outros poetas de carácter menor. Vem tudo isto a propósito da referência que quero fazer à obra de Pedro Homem de Melo, poeta injustamente esquecido pelos dominadores da difusão dos nossos poetas. A sua pressuposta adesão aos princípios conservadores da política portuguesa do último meio-século acabou por o levar para o limbo a que excelentes escritores se viram condenados por uma difusão cultural que, no nosso país, foi sempre predominantemente de esquerda. (Eu repito: compete à esquerda não realizar a castração maniqueísta do fascismo em termos de cultura. É preciso falar de tudo, erguer padrões que tornem usável, para lá da opção política, o que for ascensão da escrita em português. Não ter medo de se perguntar, por exemplo, se não haverá uma razão sociológica profunda para o facto de um livro de um homem que nunca foi um bom poeta, António Manuel Couto Viana, surgir com uma força verbal e técnica inesperada. Refiro-me a Voo Doméstico (Arcádia), onde ideologicamente muitos comigo poderão encontrar muito de negativo – como a frontal afirmação da glória de ser fascista –, mas onde se deve ter a coragem estética de compreender a beleza objectiva de vários poemas.)
Ao mesmo tempo, a persistência de Homem de Melo em usar, em termos experimentais, processos vincadamente tradicionais e temáticas de um populismo aristocratizante, a par de um critério não dominado de expressão sentimental, atingindo muitas vezes o ridículo e o dessorado imaginístico e lexical, um excesso interjectivo, uma redundância na qualidade da acentuação expressiva da amizade ou do amor, da presença física ou da despedida, afastaram a maioria dos leitores recentes e fizeram cair sobre ele o esperado silêncio generalizado.
Contudo, se um dia fosse a sua obra servida por uma rigorosa antologia dos seus melhores textos, os leitores mais descuidados veriam aparecer muita expressão verbal surpreendente (precisamente devido à depuração causada por este tipo de antologia em relação às redundâncias que o próprio poeta manifesta não ter a coragem de pura e simplesmente rasgar), e uma problematização do sentimento raramente conseguida por muita da poesia mais altissonante hoje amada.
Esses poemas seriam sobretudo de dois grandes grupos. Um, em que certa realidade da paisagem humana e natural do norte minhoto ao centro litoral irrompe; outro, em que a densidade conflituosa das paixões se prende numa manifestação lírica quase confessional.
No primeiro caso, a compreensão da paisagem humana a partir de um indivíduo (“O Cantador de Mazedo”, “Canção de Vila Real”, “Fandangueiro”) ultrapassa o mero registo folclórico, para gerar uma dimensão de grandeza humana conseguida, no poema, por uma hábil distribuição dos elementos paisagísticos, pela presença física da pessoa, pela integração do sentimento nesse padrão de referências.
No segundo caso, a sua obra obriga a levantar um problema que me parece central, não tanto para a análise, como para a formalização dos impulsos que poderão conduzir a poesia portuguesa actual, os quais a obra de Pedro Homem de Melo pode ajudar a referir, o que é, por si só, um acto crítico valorativo que deve aceitar-se fazer. Abateu-se sobre a nossa poesia uma secura expressiva notória. As tentativas de confessar ou fingir confessar pessoalidade em poema quase só conseguem ser feitas funcionar por interposto ofício da citação do sentimento noutros poetas ou através da defesa da ironia distanciadora. A busca de uma escassez emocional que terminou sendo um vazio de sentimentos ou um monocórdico repetir do mesmo sentimento; a conceptualização extrema da compreensão do mundo, com contínuo recurso a metáforas predominantemente racionais ou culturais; a ausência declarativa enroupada em ginástica visual importada – fizeram de muita da nossa poesia um lugar teórico e perdendo-se em infrutíferas buscas prosódicas, sintácticas e intermedia. A grande tradição da poesia confessional (ficcionada ou não pelos vários mecanismos de que a escrita poética dispõe), boicotada pela leitura retrospectiva a que estes enunciados padrões de escrita vieram procedendo pelos seus mais directos responsáveis ou pelos seus epígonos, precisa de ser revalorizada, não para estabelecer com ela um combate passadista e de folheca cultural de província, mas para gerar uma zona de conflito dialéctico entre as duas opções de discurso. Que permita não apenas organizar novos sentidos, a inventar, para a evolução da nossa poesia, mas sobretudo criar uma base teórica que funde o entendimento do modo como se sente evoluir, entre os poetas mais recentes, a intenção de construção e a intervenção não envergonhada de si no mundo que é a poesia.
Pedro Homem de Melo situa-se numa linha do passado do confessionalismo, da expressivização e da prosódia que deve ser lida contra as explorações mais recentes no espaço da poesia para podermos jogar, no solo rico da nossa própria poesia, em termos de compreensão e em termos de feitura, a ultrapassagem quer de uma quer de outra dessas tradições. Compreender, por exemplo, que há outras formas (e nelas este poeta se insere), para lá das arquetípicas dos poetas mais vincadamente presencistas, de o sentimento se dizer em poesia através de ritmos, figurações e temas que o colocam na distância verbal sem a qual não há escrita poética. Ignorando Homem de Melo, não o lendo, é que, quer de um ponto de vista crítico quer de um ponto de vista de produção poética, não poderemos definir-nos nesse espaço, sempre exigido pela poesia, que é elaborar a diferença dentro do âmbito do que é central.
Joaquim Manuel Magalhães, “Pedro Homem de Melo”, Os Dois Crepúsculos. Sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas. Lisboa: A regra do jogo, 1981. Aqui publicado com a autorização do autor.