ZUHAITZA
Maria S. Mendes
ÁRVORE
Assim que nasci caí na água
naquela água que vinha de cima
algum dia te levarei ao lugar onde tudo começou
mas tens de ser paciente
sorrirão os teus olhos
entretanto este poema não é
senão uma refinaria de recordações
olho como se fossem flores
as minhas mãos resumem
e penso que quando pisei esta terra pela primeira vez
já era eu um pouco
sobretudo porque são os mesmos pregos
que me prendem a esta pedra que amo com nomes em eusquera
onde a noite pregueia os montes à força
e os iguala até formarem uma única linha.
Tudo é uma cadeia de fios à volta do meu pescoço.
No princípio via trilobites na escuridão,
o chapim-azul cantava sozinho todos os invernos
e era feliz em quarto-minguante
tudo o que então fiz voltou
na forma de um peixe mudo de luz fria
e continua no chão uma das minhas árvores
que na noite de ontem o vento derrubou
continua no chão com os seus vinte e três anéis
nos primeiros vê-se um rio
– as trutas olham para algo que sou eu –
nos do centro está o teu cabelo
e a tua coluna vertebral contra o meu peito
e mesmo ao lado do tronco caído
um caroço de pêssego
o mesmo que os dedos da minha mãe
tiraram da minha garganta
e continuam a tirar ainda
só que agora já não sinto que me afogo.
Tradução do poema a partir do castelhano de Teresa Jorge Ferreira
ZUHAITZA
de Igor Estankona
Jaio eta berehala uretara erori nintzen
goitik zetorren ur fin hartara
egunen batean dena hasi zen lekura eramango zaitut
baina pazientzia izan behar duzu
irribarre egingo dute zure begiek
bitartean poema hau ez da
oroipenen birfindegi bat baino
orain lorak balira bezala begiratzen diet
nire esku laburpenei
eta iruditzen zait lur hau lehenengoz zapaldu nuenean
jadanik banintzela ni apur bat
batez ere iltze berberek lotzen nautelako
euskal izenak daramatzan harri maitatu honetara
non gauak mendiak kolpeka tolesten dituen
eta berbindu lerro bakar bat osatu arte.
Dena da harizko kate bat nire lepoaren bueltan.
Hasieran trilobiteak ikusten nituen iluntasunean,
txamilotxeak neguan bakarrik kantatzen zuen
eta zoriontsua nintzen ilbeheran
orduan egin nuen guztia itzuli da
argi hotzezko arrain mutu baten formapean
eta oraindik lurrean dago haizeak atzo gauean
bota zuen nire zuhaitzetako bat
lurrean dago bere hogeita hiru eraztunekin
hasierakoeatn erreka bat ikusten da
–arrankariek ni naizen zeozeri begiratzen diote–
erdikoetan zure ilea dago eta zure bizkarrezurra nire paparrean
eta eroritako enborraren ondoan
melokotoi hazur bat
amaren hatzamarrek eztarritik atera zidatena
eta oraindik ateratzen dihardutena
baina orain jadanik ez dut itolarririk sentitzen.
Igor Estankona, , “Zuhaitza”, AAVV, Yo es Otro, prólogo e seleção de Josep M. Rodríguez. Barcelona: DVD, 2001.
Gosto deste poema porque reconheço nele a palavra “poema” na minha língua, ainda que o poema esteja escrito em eusquera. Pensando melhor, reconheço nele a palavra “poema” em eusquera, ainda que seja igual na minha língua. Quando o encontrei, primeiro, foi a estranheza de um conjunto de letras ordenadas sem ligação a nenhuma língua por mim conhecida, embora se percebesse um título e uma sequência de versos. Que língua é esta? Depois, foi a descoberta de “poema” no meio daquelas letras, como uma porta de entrada para um lugar incompreensível. Que texto é este? A seguir, foi a leitura da tradução espanhola a partir do eusquera, em que “poema” é também “poema”, e a escrita da tradução portuguesa a partir da espanhola, em que “poema” é também “poema”. Que poema é este? “Zuhaitza”, “Árbol”, “Árvore”, de Igor Estankona?
Numa língua que resiste à história, entrou “poema”, vindo do grego, do latim, do românico. Resiste, porque a sua origem permanece desconhecida e porque continua a ser língua viva no País Basco (território do Reino de Espanha e da República Francesa). Diz o poema, sobre a água e a terra em que nasceu: “esta pedra que amo com nomes em eusquera”. Diz o poema: amar a pedra com a palavra eusquera. Mas se o amor à pedra se faz com resistência (a resistência da língua eusquera), também se faz com cedência (porque o eusquera abre-se a outras línguas, integrando palavras de diferentes origens). Assim, na minha aproximação ao poema, inicialmente marcada pela visualidade da escrita em eusquera e pelo reconhecimento da palavra “poema”, abriu-se uma linha de leitura: o poema ama a pedra com a palavra, a palavra dura. “Dura” em três sentidos: de duração, de violência, de força.
Em relação ao primeiro sentido (duração), não só a língua está impregnada de temporalidade, como o poema é “uma refinaria de recordações”, que são as “flores” que “as minhas mãos” podem colher ou os anéis “de uma das minhas árvores”. Nesta “refinaria de recordações”, depuram-se as imagens da “terra”, com os “montes”, o “chapim-azul”, o “rio”, as “trutas”, e intensificam-se as marcas das relações, pelo contacto entre os corpos: “o teu cabelo / e a tua coluna vertebral contra o meu peito”, “que os dedos da minha mãe / tiraram da minha garganta / e continuam a tirar”. Há também o segundo sentido (violência), da dureza dos “pregos / que me prendem”, da “noite” que se impõe, dos “fios à volta do meu pescoço”, da escuridão e da solidão, do vento que derruba a árvore, do “caroço" na “minha garganta”, e, no início, da queda na “água” quando “nasci”. Quanto ao terceiro sentido (força), o texto mostra que, enfrentando “tudo o que então fiz”, as palavras saem “agora” pela garganta, pelos dedos. Encontro, assim, uma imagem forte do poema como prova de salvação da asfixia (por afogamento, estrangulamento, engasgamento), da qual a “mãe” e o “tu” são agentes e testemunhas: “Assim que nasci caí na água / [...] poema [...] / só que agora já não sinto que me afogo.” “Nada más nacer caí al agua / [...] poema [...] / sólo que ahora ya no siento que me ahogo.” “Jaio eta berehala uretara erori nintzen / [...] poema [...] / baina orain jadanik ez dut itolarririk sentitzen.”
Teresa Jorge Ferreira
Teresa Jorge Ferreira é doutoranda em Estudos Portugueses – Estudos de Literatura na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, membro do IELT – Instituto de Estudos de Literatura e Tradição e bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Volta sempre à poesia porque gosta de atividades radicais.