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Levou a cadeira

Poemas de agora

Levou a cadeira

joana meirim

 

XXXVIII

 

Levou a cadeira

ao fim do terraço.

Sentou-se

abriu um pano

grande de linho

cobriu os joelhos

para que nem o sol

nem a luz

e ficou à espera

todos os dias do

verão.

 

João Miguel Fernandes Jorge, “XXXVIII”, a jornada de cristóvão de távora – terceira e última parte. Lisboa: Presença, 1990. Publicado com a autorização do autor.

Em grande parte da obra poética de João Miguel Fernandes Jorge (JMFJ), há uma salutar resistência à sedução da citação. Felizmente para a obra, pois resiste igualmente às tentativas consecutivas de se deceparem versos para usufruto público, quando se trata de dar voz a assuntos do coração. Este género de resistência contraria sobretudo a ideia de que um poema é uma espécie de livre-trânsito pelos domínios das emoções. Certos modos de fazer poesia, como o de JMFJ, parecem atrasar deliberadamente essa exposição ou consonância emocional. Não que nos seus versos não se inaugurem momentos de rara beleza ou uma cristalização de novos sentidos. Simplesmente, acontece amiúde ler o poeta como se apanhássemos uma conversa a meio. Este poema, que integra uma sequência mais vasta, não é excepção. Sobrevive muito bem a sós, tal como é aqui apresentado. E não devia ser esquecida esta arte de insinuar sentidos sem que para isso seja necessária uma ostentação do sentimento. Este poema assemelha-se mais a um intervalo entre o que se poderia dizer. O leitor espreita o poema: “Levou a cadeira / ao fim do terraço.” De quem se trata? Quem é esta pessoa? No caso de JMFJ, a poesia parece ser não raras vezes uma questão de momento, esse que é cristalizado na memória com a leveza de um sopro, ainda que permaneça como situação fulgurante. Não importa quem está ou quem não está, nem a razão de ser do movimento do poema. Importa, sim, a elipse implícita nestes dois últimos versos, onde se instala a delicada tensão do poema: “abriu um pano / grande de linho / cobriu os joelhos / para que nem o sol / nem a luz”. É nesta cegueira particular do contar na terceira pessoa do singular que o poema de JMFJ se afirma como contrário ao equívoco de que a poesia serve, por definição, como espaço comungante de sentimentos e de celebração da emotividade. A ideia algo bizarra de que o poema é um lugar privilegiado para a convergência de duas intimidades (do poeta e do leitor) é constantemente defraudada nos poemas de JMFJ, e este não é excepção. Quem fala, para quê, e que razão leva esta pessoa a ficar à espera “todos os dias / do verão”? Estas interrogações intrigam mais do que esclarecem, sugerem ao invés de gritar. Logo à partida, a terceira pessoa usada no poema inaugura uma distância necessária entre quem escreve e quem lê. Essa distância diz-nos algo acerca da separabilidade que por definição nos afasta do outro. Mas também funciona como promessa de aproximação. Este poema surge como uma mão que acena ao longe, sem que saibamos ao certo se somos nós o destinatário desse aceno. (E contudo, não deixamos de sorrir, talvez envergonhados, em resposta.) Ou como um gesto que revela e oculta em simultâneo: é-nos dito algo, mas não sabemos porquê nem para quê. Certos poemas funcionam assim, como um virar de costas sedutor, revelando e ocultando em simultâneo os vários afectos diante do olhar do leitor. O verbo em inglês overhear seria o indicado para descrever o que se passa nestes e noutros poemas de JMFJ.  Trata-se de escutar por mero acaso uma conversa a meio. Mas esta insatisfação de porquês é a insatisfação crónica de quem se propõe a dar uma resposta para a utilidade da poesia. A impressão que a estranheza da sua linguagem nos deixa poderá ser, ainda assim, a melhor resposta que temos para dar.

Frederico Pedreira


Frederico Pedreira doutorou-se no Programa em Teoria da Literatura (FLUL).  Traduziu autores como G. K. Chesterton, Oscar Wilde, W. B. Yeats, Herman Melville e Charles Dickens. Publicou, entre outros, os livros de poesia Presa Comum (Relógio D’Água, 2015) e A Noite Inteira (Relógio D’Água, 2017), e o livro de ensaios Uma Aproximação à Estranheza (INCM, 2017).