Poema Corpo Porco
joana meirim
Poema Corpo Porco
Y le digo al poema
vivirás eternamente
porque no eres un cuerpo
no eres un cerdo
al que la página niega
inmortal como un cuerno de caza en el desierto
Leopoldo María Panero, Poesía completa (2000-2010), ed. Túa Blesa. Madrid: Visor, 2012.
Mudado para o português, o poema de Leopoldo María Panero[1] discorre assim: “E digo ao poema / viverás eternamente / porque não és um corpo / não és um porco / que a página nega / imortal como um corno de caça no deserto”. Algo ou alguém parece apostrofar o próprio poema – que seria ou dictum antes de ser dito ou um não dito que se vai dizer – com, afinal, um dizer plicado que o relaciona com certos atributos. “E digo ao poema” seria essa plicatura, conquanto seja já (d)o poema apostrofado: interpelação auto-reflexiva, imersa e emersa de si, que se manifesta dispensando ostensão subjectiva, aqui reduzida à declinação em primeira pessoa do singular do verbo ‘dizer’. Effigies do poema, trata-se de algo ou alguém engatado pela copulativa “E”: um ‘começo’ in medias res – infantil ou medieval –, a sugerir uma conversa ausente ou truncada de que só se manifesta um recorte ou fracção. Mais ainda, como coisa – afinal nem algo nem alguém – a manifestar-se, devolve-nos o verbo ‘dizer’ como catacrese de ‘interpelar’. Aquele “E digo” não corresponde a um conteúdo exterior a si: diríamos que este ‘dizer’ é, antes, um ‘chamar’, isto é, trata-se do clamor não dito de um dizer. O poema: doação não doada.
Ao poema é reconhecida ou antecipada uma longevidade não relativa, isto é, sem tempo: o poema é eterno, “viverá eternamente”; o poema não é finito, é, antes, “imortal”. A (im)possível evidência desta condição é, precisamente, o dizer plicado daquele chamamento. Contudo, este clamor não deixa de ser finito, ou melhor, será efeito da inapelável limitação daquela infinitude. Por outro lado, estes atributos conformam uma ontologia do poema que requer, ainda, a sua definição pela negativa. A eternidade e imortalidade do poema é dita negativamente, sendo que essa negação se concretiza na relação entre a “página” – figura da sua mediação –, por um lado, e dois objectos, por outro, que comparecem como prefigurações da própria presença material do poema numa superfície (e.g., folha ou écran): um “corpo” e um “porco” – neste particular, assinale-se, o poema funciona melhor em português pela atracção eufónica ou hipogramática dos dois vocábulos, uma conjunção que, supondo repetição e diferença, também prefigura o “corno” do último verso. Ora “porco” e “corpo” são modelos temporais ao serem dispostos como figuras da finitude. Não sendo nem “corpo” nem “porco” – será esta a reclamação – o poema não seria finito como eles; ou, talvez melhor, não sendo como o que neles supõe finitude: a sua subsunção ao modo de um confuso morto vivo. Se a “página” como meio é deles negação é porque o seu seria o modo do morto, i.e., do infinito.
Leopoldo María Panero ajustou ao máximo a analogia, mas não extraiu consequências da obsolescência deletéria da materialidade da superfície que inscreve o poema, muito embora o texto nos confronte com ela. Isto porque o texto tematiza e coloca – de resto, en abîme – essa actualização, a sua própria actualização. De um lado o “poema”, do outro o “corpo” ou “porco”, talvez mesmo, e para simplificar, um ‘porco como corpo’; mas, como se sublinha, há um terceiro termo, aquilo a que o poema chama “página”: “não és um porco / que a página nega”. Esta “página”, enquanto sinédoque das folhas fasciculadas de um livro, senão mesmo a parte que diz o todo que é um livro, nega porcos e corpos; simultaneamente indica, ainda, a superfície material de inscrição, necessariamente finita – como um “porco” ou um “corpo”. Por norma, uma página – ou um livro – é mais longeva que um porco. O texto de Panero, contudo, dispõe a diferença do poema a objectivar-se. Assim, negando o “porco”, a página não nega o “poema”; pois o poema não é como o porco negado pela página. O texto determina o estabelecimento de uma relação entre poema e página, colocada, contudo, de modo enviesado. O poema tende para a actualização numa superfície, e.g. na página – que, neste sentido, propõe o texto em pauta, paradoxalmente o afirma, não o negará como ao porco. Não obstante, em rigor, também a “página” nega o poema, sendo paradoxal condição da sua possibilidade. “Corpos” e “porcos” ‘vivem’ de um determinado modo, de que se distinguirá uma “página”, conquanto se coloque em suspensão não ser figura auto-reflexiva de uma superfície de mediação infinita – que não pode ser – mas, ao invés, de uma superfície limitada, isto é, finita. Isto supõe, enfim, que a negatividade insistentemente proclamada suspende uma assimilação afirmativa – pois em rigor uma “página” é também como um “corpo” ou um “porco”, distinguindo-se muito embora por uma assimétrica resistência quer física quer metafísica. Digamos que porcos e páginas se assimilam e distinguem pelas suas determinações materiais: persistindo de modo diverso.
Proclamar que o “poema” não só ‘viva’ como ‘viva eternamente’ é dispô-lo na ordem do virtual, nem ideal nem material. Significará isto que o ‘poema’ não é tão-só ideia ou abstracção, pois essa sua ‘vida eterna’ e ‘imortalidade’ requer actualização. Entenderemos por actualização, precisamente, a propriedade do virtual, que tende para a concretização. E é só por esse confuso contacto entre poema e superfície, igualmente uma intransponível distância entre ambos, que o “poema” pode ter uma analogia negativa em “corpos” e “porcos” – afinal também da ordem do virtual tendente ao actual, pelo que a negação é também afirmação de identidade. Neste sentido, o poema de Leopoldo María Panero é enigma sem enigma, pois conjuga a ostensão e o ocultamento desta sageza: o atributo de “imortalidade” do último verso pode predicar ou o “poema”, ou um “corpo” ou um “porco”: homologam-se como “corno de caça”, objectivando-se pela negatividade afirmativa que lhes sustenta a relação. E como clausura impossível desta peculiar enigmática de um não dito que se diz – a poesia, justamente – teremos a figura final do poema, “imortal como um corno de caça no deserto”, que não é outra, é de supor, que uma possível figuração do ‘clássico’. Pois não teve classicum e classici também o sentido de ‘chamamento militar’ ou mesmo ‘trompete de guerra’? O ‘clássico’ como “corno de caça” – a poesia como ‘chamamento’ e não como ‘dicção’: se um ‘clássico’ conversa, é plicado que conversa; ergo será contradicção – que se dispõe no movimento suspensivo da sua tensão com um “deserto” – meio como uma “página” – que o inscreva, tudo figurações da potencial resposta ao seu apelo irresistível.
Pedro Serra
[1] Este poema integra um conjunto intitulado “Objetivismo”, publicado no livro Teoría del miedo.
Pedro Serra é professor da Universidade de Salamanca, onde lecciona literatura portuguesa e brasileira, integrando ainda a equipa docente do Doutoramento em Materialidades da Literatura da Universidade de Coimbra.