Vamos a hacer limpieza general
Nuno Amado
Vamos a hacer limpieza general
y vamos a tirar todas las cosas
que no nos sirven para nada, esas
cosas que ya no utilizamos, esas
otras que no hacen más que coger polvo,
las que evitamos encontrarnos porque
nos traen los recuerdos más amargos,
las que nos hacen daño, ocupan sitio
o no quisimos nunca tener cerca.
Vamos a hacer limpieza general
o, mejor todavía, una mudanza
que nos permita abandonar las cosas
sin tocarlas siquiera, sin mancharnos,
dejándolas donde han estado siempre;
vamos a irnos nosotros, vida mía,
para empezar a acumular de nuevo.
O vamos a prenderle fuego a todo
y a quedarnos en paz, con esa imagen
de las brasas del mundo ante los ojos
y con el corazón deshabitado.
Amalia Bautista “Vamos a hacer limpieza general”, Coração Desabitado, Lisboa: Averno, 2018.
Gosto deste poema porque ele se constrói ao contrário de um artigo de jornal. De facto, uma notícia começa com uma primeira frase forte para prender a atenção, deixando que os pormenores se desdobrem em pirâmide. No olhar de uma certa leitura, Amalia Bautista faz exactamente o oposto: deixa a força para o fim, como se quisesse que as duas últimas palavras ficassem a ressoar dentro de cada um de nós, numa reverberação permanente à qual nem o atrito faz frente.
A poetisa espanhola usa uma expressão feliz - coração desabitado – e a felicidade da frase é imensa, porque se constitui, simultaneamente, numa consequência e numa causa de tudo aquilo que é dito nas linhas anteriores: desabitamos o coração porque limpámos tudo, limpamos tudo porque desabitámos o coração.
De um coração desabitado – e a expressão é uma espécie de punctum de que falava Roland Barthes – só de forma ingénua (ou pessimista, que é uma forma de ingenuidade) se poderá dizer que é um coração abandonado, como se fosse uma casa deixada à sua sorte, à infiltração do tempo e da chuva que tudo destrói. Muito pelo contrário, um coração desabitado é um coração aberto, disponível, como uma criança que vai pelo campo (que é, no fundo, a ideia de peregrinar) com um saco vazio onde põe tudo – o sabor do pão, a cor das ravinas, o aroma do eucalipto molhado, mas, também, o olhar das pessoas, o perfil dos rostos, os gestos das mãos – e com isso formasse uma ideia aprazível do mundo.
A leitura destes dois versos “vamos a irnos nosotros, vida mía, / para empezar a acumular de nuevo” é a chave para uma opção / decisão: não limpamos porque temos a mais, limpamos para poder ter mais – talvez para poder ter diferente, ter melhor, no sentido mais bonito e menos material da palavra. Não deitamos nada fora, apenas nos afastamos das coisas, porque um coração habitado é, tantas vezes, o reflexo de um sítio e de um tempo, e se nos afastarmos disso estamos a distanciar-nos de tudo aquilo que em nós se perturbou e escureceu: o excesso de loiça, as roupas acumuladas, as mobílias, as amarguras, o olhar que se desvia do homem estendido na rua, a mão que se recolhe perante uma mão desconhecida, um telefone que, no silêncio, nos dá a ilusão de um mundo sossegado; mas, também, as saudades das partidas antecipadas, as agruras que foram chão por onde caminhámos, as tristezas que se agarram a nós e formam uma outra pele.
Deixamos tudo, deitamos tudo fora, fazemos um fogueira com tudo. Amalia Bautista dá-nos liberdade total. Só nos desafia a uma coisa: o coração desabitado, para com ele acolhermos o Outro.
João de Bragança
João de Bragança chegou à ideia de poesia através do fado: versos rimados e ritmados. Foi engenheiro muitos anos, fez o Mestrado em Teoria da Literatura e tenta fazer o doutoramento na mesma área, escrevendo sobre despojamento. Ainda ouve fado, mas já lê outra poesia.