Gosto deste poema, em primeiro lugar, por ser muito visual. Quase todos os versos se materializam numa imagem que nos acompanha durante muito tempo, mesmo depois de praticamente termos esquecido todos os outros textos do mesmo livro.
Outro elemento de que gosto é o ponto de partida ser uma planta espontânea com um aspecto fragilíssimo e insignificante – o dente-de-leão. É precisamente a fragilidade desta flor, sempre prestes não só a desfazer-se, mas também a ser levada pelo vento ou pelo sopro de algum transeunte, que a torna uma referência fortíssima para a relação na base de todo o poema: a semelhança entre o dente-de-leão e o pensamento ou o cérebro humano, com ênfase na ideia, justificada, de que a nossa pobre cabeça está sempre no limiar da desintegração.
Convenhamos que, como sugere Oswald, o pensamento participa num “confronto desigual”. As imagens da velha agarrada pelo pescoço e sacudida até se desfazer, o homem de madeira que atravessa o fogo, dir-se-ia que distraidamente, surgem associadas à questão da memória. A associação das sementes do dente-de-leão à memória, através das referências à amnésia, à cabeça que se abre ao vento, “toda ela devastação e fraqueza”, sublinha as vulnerabilidades de uma das capacidades mais essenciais do ser humano, com efeitos espalhafatosos quando começa a falhar.
No dístico final, Osíris pesa a alma com uma pena. Estamos mais habituados a avaliar o valor das coisas (metais preciosos, alimentos, acontecimentos e às vezes até a literatura) pelo peso que têm, não pela leveza, mas, segundo o mito egípcio, os corpos mais pesados do que uma pena seriam devorados por um monstro, os corpos mais leves do que esta receberiam a recompensa da vida eterna. No título do poema temos uma figura aparentemente fraca que ao longo do texto vai revelando a sua força; no fim concluímos que algo leve pode ser mais valioso do que algo pesado.
Oswald deixa-nos com esta imagem inesperada, sem nos explicar o que distingue as almas mais leves – o que fizeram para não terem peso. Para resolver esta dúvida, talvez seja preciso reter a lição do dente-de-leão, flor simultaneamente “sem propriedade” e de “mil capacidades”, que, perante a violência que o sacode, “desgastado até ao seu único elemento recalcitrante”, simplesmente abre mão do que parecia importante, mas afinal era dispensável.
A partir destas imagens simples, mas fortíssimas em termos visuais e conceptuais, Alice Oswald compõe um poema breve que, tal como o dente-de-leão, entrega as suas sementes ao vento. É inevitável que algumas delas se prendam na nossa roupa ou no nosso cabelo, deixando-nos a pensar em questões como o desequilíbrio entre o nosso pensamentozinho e as forças poderosas com que tem de lidar, o papel da memória na nossa relação connosco mesmos e o mundo, o que é essencial e o que poderíamos dispensar.
Alda Rodrigues