Poemas quotidianos
Maria S. Mendes
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Poemas quotidianos
como o sol
como a noite
como a vontade de comer
e o sono
como as preocupações
e o amor
e porque saio à rua
e trabalho
diàriamente
António Reis, “Poemas quotidianos”, Poemas Quotidianos. Lisboa: Tinta-da-China, 2017.
Aqui publicado com autorização da editora.
Este poema não devia ter sido esquecido porque descreve aquilo que é o trabalho de um poeta. A comparação apresentada parece simples: os poemas são quotidianos porque são escritos com a mesma frequência com que se dão fenómenos como o dia e a noite, a fome e o sono, o amor e as preocupações, ou seja, todos os dias. Mas a referência pode não ser apenas ao ritmo destes acontecimentos: pode indicar ainda o que é descrito nesses poemas, os assuntos neles tratados. Mais, e mais estranho: o autor pode estar a dizer que poemas, ou pelo menos os que ele escreve, são da mesma natureza do dia e da noite, da fome e do sono, do amor e das preocupações, estando a construir um argumento acerca de como poemas acontecem.
No entanto, nas categorias invocadas, há uma distinção: dia, noite, fome e sono não são ocorrências da mesma natureza de amor e preocupações; enquanto as primeiras escapam ao controlo humano, e são partilhadas por humanos com outros animais, as duas últimas são exclusivamente humanas (se controláveis ou não é uma discussão diferente), embora haja quem pense o contrário. Estas possibilidades não se excluem nem se esclarecem na última estrofe. “Diàriamente” qualifica tanto o sair à rua como o trabalho, e poderíamos arrumar a questão com isso: quotidianos equivale a diariamente, e ficar-nos-íamos então pela questão da frequência com que os poemas são escritos. Porém, a ligação causal “porque” obriga-nos a voltar à natureza destes poemas: o autor sai de casa todos os dias para trabalhar, e os poemas surgem por causa disso. O autor não se distingue das outras pessoas (pelo menos das que trabalham), e quer que os seus poemas estejam na mesma categoria de qualquer outro acontecimento diário (não apenas acontecimentos naturais, mas humanos).
Reparando que o poema consiste numa enumeração em gradação decrescente, habilmente construída do geral para o particular, do humanamente incontrolável para o humanamente controlável, o trabalho da última estrofe não diz respeito somente à actividade necessária ao sustento do autor; também a escrita é trabalho diário, caso contrário dificilmente uma enumeração poderia resultar num poema.
Helena Carneiro
Helena Carneiro fez o mestrado no Programa em Teoria da Literatura (FLUL). É redactora e assistente editorial na Imprensa da Universidade de Lisboa. Dirige a secção de recensões da revista online Forma de Vida, para a qual também faz entrevistas. Tem tido quem lhe explique poesia e gosta muito de Philip Larkin, que na sua lápide preferiu ser denominado “escritor”.