Gosto deste poema por três bons motivos que não se sobrepõem nem têm necessariamente uma articulação óbvia entre si, até porque se manifestaram em diferentes sessões de leitura. Formulados com toda a simplicidade, esses bons motivos seriam: i) o efeito de perfeição compositiva; ii) o mistério da maçã; iii) a promessa de um “garden abstract”.
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No final do processo, o poema caligrafado ganha uma visualidade particular, a que só temos acesso indireto, por um novo efeito de remediação, patente na decomposição grafemática da palavra “p o e m a” com que o texto encerra. A decomposição mima a decomposição de “ja-ca-ran-dá” e de “tin-ti-na-bu-lan-tes”, a escrita mima a oralidade mimada pela escrita, que mais uma vez, como é da natureza do suplemento derridiano, vem primeiro.
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Como se percebe retrospectivamente, assim que deparamos com a erotização do corpo feminino no último verso, nada do que Manuel Bandeira vai dizendo que viu ao longo do poema foi coisa deveras vista. A visão a que alude logo a abrir, não por acaso retomada no verso que antecede a confidência do que vira afinal, deve por isso ser entendida como interjeição: “vi os céus!” significa na verdade “Oh céus!”.
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Este poema não devia ter sido esquecido porque recorda algo que frequentemente se esquece: que um poema é, antes de tudo o resto, um poema.
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Este é talvez o poema mais citado de Raymond Carver, pelas razões erradas: é tido como uma boa descrição do significado do amor na vida humana, mas Carver não está a falar do tipo de amor que se presume.
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Às vezes, toda a alegria do mundo está em comovermo-nos assim: passamos entre as coisas, as caras, os sítios, e no gesto delicado de inclinarmos a cabeça enquanto fechamos os olhos, fazemos que sim, mostramo-nos gratos, e seguimos, com o calmo segredo de sermos dignos do que nos acontece. Qualquer coisa assim.
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Jane Helier não tem razão ao dizer a Miss Marple que nada acontece em St. Mary Mead, pois as pessoas são todas muito parecidas onde quer que se encontrem e é sempre possível encontrar semelhanças entre as coisas neste mundo (por exemplo, entre “Montalvão tem o formato” e “O dos castelos”, de Pessoa). Mesmo Portalegre, que não é, bem entendido, St. Mary Mead, levou Régio (lembrado há tempos aqui nos Jogos) a invocar idêntico argumento, ao explicar, contra quem queria ir para uma metrópole a sério, que a experiência na capital de província do Alto Alentejo era tão diversa como em Paris. Até existia um sapateiro que sodomizava os filhos.
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Ao pobre músico ambulante que tem na harpa um ganha-pão miserável e precário (inevitável é o reenvio àquela imagem de indigência e desespero irreparáveis que é o “O Homem do Realejo” da Viagem de Inverno de F. Schubert), não é dada outra escolha que não seja a de vaguear pelo mundo, à espera de que lhe saia a “boa sorte”: a flor azul que ele persegue passando de cidade em cidade, de charneca em charneca (as viagens de quem não tem dinheiro são desconfortáveis, pesadas. Nada de matas idílicas: o que ele enfrenta são o mau cheiro e a fria humidade dos pântanos).
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Este poema não devia ser esquecido porque, para além da admirável construção imagética que o caracteriza, se debruça de uma forma peculiar sobre uma das motivações principais para a existência de violência entre grupos de seres humanos: uma espécie de hábito mental que classifica o outro através da sua inserção em categorias pré-existentes, negando-lhe a sua individualidade.
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Este poema não devia ter sido esquecido, porque serve de argumento contra uma concepção diacrónica de decadência moral.
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Gosto particularmente de “Musgo”, e creio ter decorado a estrofe final porque a palavra isto sempre me fascinou. Pessoa, Carlos de Oliveira, Manuel António Pina deram-lhe amplitudes muito particulares, mas o próprio uso comum de isto já me parece extraordinário. Que a palavra que serve para designar o que está perto de mim possa ser simultaneamente tão vazia e tão incomensuravelmente cheia de todo o possível diz muito da nossa condição de existência (e a que será que se destina? – perguntava justamente Caetano Veloso).
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O título e a dedicatória do poema são, respectivamente, o conteúdo e a destinatária da carta que o poema descreve; o poema não é a carta.
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Sempre que passo algum tempo nos poemas completos de Robert Frost acabo por parar neste, e por pensar que não devia ter esquecido não propriamente o poema, e nem sequer aquele extraordinário verso feito de nomes de plantas, mas o efeito da sua leitura. É certo que a sua situação de partida está próxima daquilo que imediatamente recordamos de outros poemas de Frost, e que podemos reconhecer como eixo desta sobreposição límpida entre poesia e especulação: uma paragem no meio do caminho, situação tão clara em “The Road not Taken” (“long I stood”) ou em “Stopping by the Woods on a Snowy Evening”, por exemplo – a interrupção do percurso que faz parecer natural a reflexão como curso dos versos.
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Este poema não devia ter sido esquecido, porque ajuda quem o leia a perceber que não há nada de errado em começar de novo, pelo contrário, e também porque sugere que a loucura talvez seja a forma mais sã de sermos humanos.
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Ó poesia, poesia, poesia
Ergue-te, ergue-te, ergue-te
Da febre elétrica do piso noturno.
Solta-te das elásticas e equívocas silhuetas
Serpenteia no ímpeto e no grito inesperado
Na anónima e monótona troada
De vozes incansáveis como flautas
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O talho não fica bem à poesia – esta assunção é tão evidente que nos esquecemos de a questionar (o que nos coloca imediatamente fora da poesia, sendo o questionamento das evidências gesto poético por excelência), excluindo dos nossos horizontes de versos não apenas o cheiro do sangue e o martírio do bife, mas todos aqueles rituais complicados de manipulação alimentar e técnica da morte que fazem a fortuna dos policiais narrativos e televisivos, inexoravelmente seriais.
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Este poema não devia ter sido esquecido porque serviu de mote a Miguel Esteves Cardoso na sua crónica sobre o amor, intitulada precisamente “Amor” e publicada n’A Causa das Coisas.
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O sortilégio deste poema vem do seu tom meditativo e confessional, do modo como o “eu” se interpela (“ô toi que voilà”) e se recrimina, do poder sugestivo das imagens (o céu, a árvore, o pássaro) e dos sons (o sino, o rumor da cidade), que resumem a vida “simple et tranquille” fora das grades; e também da sua brevidade formal, da harmonia do ritmo e das sonoridades (repare-se no verso “berce sa palme”, cuja forma verbal remete nostalgicamente para o mundo da infância), da alternância do metro (versos de 8 e 4 sílabas) e do efeito de melopeia que resulta da repetição das palavras finais nas rimas (um procedimento que Verlaine usara já em “Il pleure dans mon coeur”).
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“Andamento Holandês” (1963) não deve ser esquecido porque é um poema contínuo, espécie de manifesto poético do temperamento do autor, cujos ecos poderão ser encontrados em “A Caminho do Corvo” (1969), segundo poema de Sapateia Açoriana.
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Na última estrofe, diz-nos o poeta que espera a noite em que possa finalmente unir-se à imagem que espelha no fundo do poço. Termina o poema com uma exclamação, sinal de esperança, mas bem irónica, pois bem sabe o poeta que a espera será eterna.
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