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Súplica (II)

Poemas de antes

Súplica (II)

Maria S. Mendes

 

Súplica (II)

 

Olha pra mim, amor, olha pra mim;

Meus olhos andam doidos por te olhar!

Cega-me com o brilho de teus olhos

Que cega ando eu há muito por te amar.

 

O meu colo é arminho imaculado

Duma brancura casta que entontece;

Tua linda cabeça loira e bela

Deita em meu colo, deita e adormece!

 

Tenho um manto real de negras trevas

Feito de fios brilhantes d’astros belos

Pisa o manto real de negras trevas

Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!

 

Os meus braços são brancos como o linho

Quando os cerro de leve, docemente…

Oh! deixa-me prender-te e enlear-te

Nessa cadeia assim eternamente!...

 

Vem para mim, amor... Ai não desprezes

A minha adoração de escrava louca!

Só te peço que deixes exalar

Meu último suspiro na tua boca!...

 

Florbela Espanca, “Súplica (II)”, Trocando Olhares. Lisboa: INCM, 1994.

 

Este poema não devia ter sido esquecido, porque combina tensão erótica e decoração de interiores. Em tempos, um poeta e crítico literário sugeriu que “Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!” era o pior verso da história da literatura portuguesa. Não sei se o é, mas sabemos por Maria Lúcia Dal Farra, responsável pela edição de Trocando Olhares, caderno onde Florbela escreveu poemas e projectou edições, que “Súplica” nunca integrou qualquer livro de Florbela Espanca. O lugar de Florbela Espanca no cânone literário português não é linear, como explicaram Vitorino Nemésio, que atribui a ambivalência da recepção crítica à circunstância de a vida de Espanca ofuscar a sua arte, e Eduardo Lourenço, que sugere que Antero de Quental evita a mulher como “a Salomé futura do Simbolismo, Eros em toda a sua magnificência instintiva, bárbara” que encontramos no poema de Florbela Espanca.

Na verdade, “Súplica” combina um derramamento erótico de índole confessional (“Vem para mim, amor... Ai não desprezes / A minha adoração de escrava louca!”) com uma inesperada dimensão doméstica cuja instância mais flagrante é o referido verso “Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!”, através da transubstanciação do cabelo em alcatifa. Todavia, já antes o convite da amante ao amado (“Deita em meu colo, deita e adormece!”) conduzira a atenção do leitor, invocando o espaço privado do quarto, através da transformação do colo em almofada.

Se o verso “Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!” parece elevar ao paroxismo a submissão amorosa da mulher, o arrojo da imagem é imediatamente contrabalançado pelo prosaísmo vocabular, ou melhor, pelo tipo de associações que fazemos quando confrontados com o substantivo “alcatifa”: superfície rugosa e grená que decorava as casas portuguesas por volta de 1980. Aos nossos olhos cansados, o verso arrefece a ebulição erótica do poema, embora pretenda exactamente o contrário.

Em “Súplica”, a sedução faz-se pelo olhar e pela cor. Correspondendo à tradição, o colo é branco e casto; a cabeça, loira e bela, e os cabelos são negras trevas. No conjunto dos sedutores encantos femininos, o cabelo tem uma importância fulcral e uma história considerável. Na lírica galego-portuguesa, de acordo com Stephen Reckert e Hélder Macedo é atribuído ao cabelo um forte simbolismo erótico, encontrando-se na comunidade hispano-judaica a chamada “noche de cabellos”, que designa a noite de núpcias.

Também os braços são “brancos como o linho”, mesmo quando servem para numa cela atar, fechar e prender perpetuamente os amantes ou, pelo menos, até que a morte os separe. Tal como os contos de fadas, o poema de Florbela Espanca termina no momento certo, passando da súplica amorosa à projecção do fim da vida ou, de forma conotativa, ao êxtase sexual, ignorando tudo o que fica de permeio. Aqui chegados, é difícil esquecer que Florbela Espanca casou três vezes e se divorciou duas, e que escreveu: “O casamento é brutal… O casamento é um grilhão… Acho o casamento uma coisa revoltante…” Os estudiosos parecem concordar que a personalidade amorosa e inquieta de Florbela teria dificuldade em lidar com o quotidiano do casamento, trivial substituição dos inícios da paixão.

António J. Ramalho


António J. Ramalho é arquivista e desconfia de afirmações genéricas, porém enfáticas, do tipo “gosto muito de poesia”.