Contact Us

Use the form on the right to contact us.

You can edit the text in this area, and change where the contact form on the right submits to, by entering edit mode using the modes on the bottom right. 

         

123 Street Avenue, City Town, 99999

(123) 555-6789

email@address.com

 

You can set your address, phone number, email and site description in the settings tab.
Link to read me page with more information.

o poeta japonês descobre a palavra jacarandá

Poemas de antes

o poeta japonês descobre a palavra jacarandá

Nuno Amado

 

gôzô então

experimenta pronunciar

a palavra ja-ca-ran-dá

e começa a descobrir o Brasil

por essas vogais em tupi-guarani

que soam em japonês –

tin-ti-na-bu-lan-tes –

como os sinos suspensos

à porta do estúdio

de um letrado que

neste preciso instante

caligrafa em kioto

este  p o e m a

 

Haroldo de Campos, excerto de “o poeta japonês descobre a palavra jacarandá”, Crisantempo. No espaço curvo nasce um. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.

Trata-se de um poema narrativo sobre o poeta japonês Gôzô Yoshimasu, casado com a brasileira Marília, cantora e compositora, como aprendemos da nota sobre o texto no final do livro. O poeta viaja até ao Brasil, descobrindo aí a palavra “jacarandá”. Transcrevo a última estrofe:

 

 gôzô então

experimenta pronunciar

a palavra ja-ca-ran-dá

e começa a descobrir o Brasil

por essas vogais em tupi-guarani

que soam em japonês –

tin-ti-na-bu-lan-tes –

como os sinos suspensos

à porta do estúdio

de um letrado que

neste preciso instante

caligrafa em kioto

este  p o e m a

Notemos, então, para começar, que o poeta é aquele que descobre coisas que são palavras. Neste caso, a palavra “jacarandá”, devidamente escandida ou, melhor, objeto de uma inscrição oral, por decomposição, que a escrita traduz, dando-a a ver, na medida em que a inscreve duplamente, recorrendo ao itálico e ao seu seccionamento por diacrítico.

O poeta, recuemos um pouco, é aquele que para descobrir experimenta, sendo a experiência a pronúncia de uma palavra estrangeira: a inscrição é função desse quase unheimlich da palavra enquanto materialidade sonora que pede subdivisão ou mastigação, troço por troço, de uma palavra decomposta nos seus blocos sonoros mínimos. Assim se começa a descobrir o Brasil, qual um Pero Vaz de Caminha que (de novo) se depara com as vogais em tupi-guarani que propiciam a radical experiência do Outro na linguagem – em nenhum momento o poema concede que esta experiência, que ocorre “no campus da / cidade u- / niversitária” em S. Paulo, como se lê em secção anterior, decorra do primado de uma referência, qual fosse o contacto, muito plausível, com o jacarandá: a questão, digamo-lo assim, parece ser impertinente para a teoria da experiência da linguagem (e para a teoria da poesia) que aqui se veicula. O poeta, porém, não resiste a traduzir a experiência da linguagem a que é submetido o outro poeta, neste caso o japonês, mergulhando na consciência deste e declarando que as vogais da palavra tupi-guarani soam em japonês tin-ti-na-bu-lan-tes – um efeito de inscrição oral com sinal quase culturalmente inverso ao do jacarandá. Ou seja, radicalizemos, ja-ca-ran-dá, para um japonês, equivaleria a (algo de) tin-ti-na-bu-lan-te. Estranha equivalência, decerto, não autorizada pela própria emissão sonora e antes do domínio pragmatista dos efeitos (encantatórios) induzidos pela experiência da alteridade.

Por outro lado, a estranheza da equivalência, ou a estranheza tout court da experiência, ativa a meta-questão da tradução, que é afinal a que sustém todo o fragmento, e que podíamos enunciar num axioma geral do tipo: Não é possível não traduzir ou, o que dá no mesmo, Tudo é traduzível. Nada disto põe, obviamente, em causa a reserva metafísica do “intraduzível”, e, do mesmo passo, tudo isto torna problemáticas considerações filológicas sobre a “fidelidade” da tradução – uma questão fatal, já agora, quando se aborda a tradução do ideograma numa língua alfabética, ou ao invés, como ocorreria no final do poema.

A tradução ocorre, de facto, na segunda parte do poema, introduzida por um “como” que remete, em primeira instância, para a experiência dos “sinos suspensos” o efeito sonoro “tin-ti-na-bu-lan-te”, naturalizando por efeito de contexto a estranheza (a inferência óbvia é a de que toda a estranheza é um efeito de contexto), e, em segunda e surpreendente instância, desloca do Brasil para o Japão a atividade de escrita do poema. Ou melhor, desloca para o Japão a atividade de inscrição caligráfica do poema inscrito maquinicamente.

Assim, e numa inversão final, o poema que parece explorar a experiência da descoberta da pronúncia de uma palavra tupi-guarani torna-se um poema caligráfico, o mesmo é dizer, duplamente escrito/inscrito (pelo poeta que se assina Haroldo de Campos e por um calígrafo japonês). Haroldo revela-se, uma vez mais, um poeta-teórico gramatológico e, para lá disso, um pensador dos meios enquanto modalidades de inscrição e em tradução – ou melhor: em remediação – perpétua.

No final do processo, o poema caligrafado ganha uma visualidade particular, a que só temos acesso indireto, por um novo efeito de remediação, patente na decomposição grafemática da palavra “p o e m a” com que o texto encerra. A decomposição mima a decomposição de “ja-ca-ran-dá” e de “tin-ti-na-bu-lan-tes”, a escrita mima a oralidade mimada pela escrita, que mais uma vez, como é da natureza do suplemento derridiano, vem primeiro.

 

Osvaldo Silvestre


Osvaldo Manuel Silvestre é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde ensina Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Análise e Crítica de Filmes. É coordenador do Instituto de Estudos Brasileiros da sua Faculdade. O seu último ensaio publicado é "Gramatiquinha Radiofónica. Mário de Andrade e o corpo político da língua" O seu último livro é o volume, co-organizado com Rita Patrício, Conferências do Cinquentenário da Teoria da Literatura de Vítor Aguiar e Silva. Braga. UMinho Editora, 2020.