o poeta japonês descobre a palavra jacarandá
Nuno Amado
gôzô então
experimenta pronunciar
a palavra ja-ca-ran-dá
e começa a descobrir o Brasil
por essas vogais em tupi-guarani
que soam em japonês –
tin-ti-na-bu-lan-tes –
como os sinos suspensos
à porta do estúdio
de um letrado que
neste preciso instante
caligrafa em kioto
este p o e m a
Haroldo de Campos, excerto de “o poeta japonês descobre a palavra jacarandá”, Crisantempo. No espaço curvo nasce um. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.
Trata-se de um poema narrativo sobre o poeta japonês Gôzô Yoshimasu, casado com a brasileira Marília, cantora e compositora, como aprendemos da nota sobre o texto no final do livro. O poeta viaja até ao Brasil, descobrindo aí a palavra “jacarandá”. Transcrevo a última estrofe:
gôzô então
experimenta pronunciar
a palavra ja-ca-ran-dá
e começa a descobrir o Brasil
por essas vogais em tupi-guarani
que soam em japonês –
tin-ti-na-bu-lan-tes –
como os sinos suspensos
à porta do estúdio
de um letrado que
neste preciso instante
caligrafa em kioto
este p o e m a
Notemos, então, para começar, que o poeta é aquele que descobre coisas que são palavras. Neste caso, a palavra “jacarandá”, devidamente escandida ou, melhor, objeto de uma inscrição oral, por decomposição, que a escrita traduz, dando-a a ver, na medida em que a inscreve duplamente, recorrendo ao itálico e ao seu seccionamento por diacrítico.
O poeta, recuemos um pouco, é aquele que para descobrir experimenta, sendo a experiência a pronúncia de uma palavra estrangeira: a inscrição é função desse quase unheimlich da palavra enquanto materialidade sonora que pede subdivisão ou mastigação, troço por troço, de uma palavra decomposta nos seus blocos sonoros mínimos. Assim se começa a descobrir o Brasil, qual um Pero Vaz de Caminha que (de novo) se depara com as vogais em tupi-guarani que propiciam a radical experiência do Outro na linguagem – em nenhum momento o poema concede que esta experiência, que ocorre “no campus da / cidade u- / niversitária” em S. Paulo, como se lê em secção anterior, decorra do primado de uma referência, qual fosse o contacto, muito plausível, com o jacarandá: a questão, digamo-lo assim, parece ser impertinente para a teoria da experiência da linguagem (e para a teoria da poesia) que aqui se veicula. O poeta, porém, não resiste a traduzir a experiência da linguagem a que é submetido o outro poeta, neste caso o japonês, mergulhando na consciência deste e declarando que as vogais da palavra tupi-guarani soam em japonês tin-ti-na-bu-lan-tes – um efeito de inscrição oral com sinal quase culturalmente inverso ao do jacarandá. Ou seja, radicalizemos, ja-ca-ran-dá, para um japonês, equivaleria a (algo de) tin-ti-na-bu-lan-te. Estranha equivalência, decerto, não autorizada pela própria emissão sonora e antes do domínio pragmatista dos efeitos (encantatórios) induzidos pela experiência da alteridade.
Por outro lado, a estranheza da equivalência, ou a estranheza tout court da experiência, ativa a meta-questão da tradução, que é afinal a que sustém todo o fragmento, e que podíamos enunciar num axioma geral do tipo: Não é possível não traduzir ou, o que dá no mesmo, Tudo é traduzível. Nada disto põe, obviamente, em causa a reserva metafísica do “intraduzível”, e, do mesmo passo, tudo isto torna problemáticas considerações filológicas sobre a “fidelidade” da tradução – uma questão fatal, já agora, quando se aborda a tradução do ideograma numa língua alfabética, ou ao invés, como ocorreria no final do poema.
A tradução ocorre, de facto, na segunda parte do poema, introduzida por um “como” que remete, em primeira instância, para a experiência dos “sinos suspensos” o efeito sonoro “tin-ti-na-bu-lan-te”, naturalizando por efeito de contexto a estranheza (a inferência óbvia é a de que toda a estranheza é um efeito de contexto), e, em segunda e surpreendente instância, desloca do Brasil para o Japão a atividade de escrita do poema. Ou melhor, desloca para o Japão a atividade de inscrição caligráfica do poema inscrito maquinicamente.
Assim, e numa inversão final, o poema que parece explorar a experiência da descoberta da pronúncia de uma palavra tupi-guarani torna-se um poema caligráfico, o mesmo é dizer, duplamente escrito/inscrito (pelo poeta que se assina Haroldo de Campos e por um calígrafo japonês). Haroldo revela-se, uma vez mais, um poeta-teórico gramatológico e, para lá disso, um pensador dos meios enquanto modalidades de inscrição e em tradução – ou melhor: em remediação – perpétua.
No final do processo, o poema caligrafado ganha uma visualidade particular, a que só temos acesso indireto, por um novo efeito de remediação, patente na decomposição grafemática da palavra “p o e m a” com que o texto encerra. A decomposição mima a decomposição de “ja-ca-ran-dá” e de “tin-ti-na-bu-lan-tes”, a escrita mima a oralidade mimada pela escrita, que mais uma vez, como é da natureza do suplemento derridiano, vem primeiro.
Osvaldo Silvestre
Osvaldo Manuel Silvestre é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde ensina Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Análise e Crítica de Filmes. É coordenador do Instituto de Estudos Brasileiros da sua Faculdade. O seu último ensaio publicado é "Gramatiquinha Radiofónica. Mário de Andrade e o corpo político da língua" O seu último livro é o volume, co-organizado com Rita Patrício, Conferências do Cinquentenário da Teoria da Literatura de Vítor Aguiar e Silva. Braga. UMinho Editora, 2020.