(em directo)
Maria S. Mendes
(em directo)
sou uma escritora e não gosto de palavras
tenho-lhes nojo e sinto medo
eu que sinto coisas não posso
deixar de contar o que vejo da varanda
pelos dedos tantos dias tantos medos
nem era prudente dizer de outra forma
que não por objectos ou narrativas de objectos
ou esquemas que descrevem objectos evoluindo
para uma sociedade sem eles
eu que não acredito na forma
e não tenho um pedaço
de terra no campo
sou uma escritora cuja carne se move
de perto não dás por nada mas à distância
oh à distância sou a dança do sangue verdadeiro
aquela e aquele que fervem
em mim
e outros que nem sei
pela obrigação da liberdade
que não suporto viver cerrada
mi casa es su casa
como eu detesto a palavra
sangue
sobretudo em romances
eu que todos os dias olho conformada para a História
revirando-me na cama atulhada
de batalhas antigas e analiso descrevo comento
detalhadamente gráficos de mortes
modernas
em directo
em grupos de visualização
eu produzo eu sou a minha produção
eu e a minha página sociável
para esclarecer de vez
a miséria do outro
e iluminar de frente todos os futuros
sou uma escritora e não gosto de palavras
nem me peças por favor para crer nas máscaras
só na minha história azedada
ao lume da profissão
usando palavras porque sim
porque a carne não serve
porque as ideias não
palavras
que remédio
como dizer
atrapalha-se-me o eu
acredita
não posso com certas séries
de palavras que aspiram ao cómico
em tempos de peste não se limpam livros
e pensamos todos os dias
como lúcidos sem drama fizeram
em colocar a própria cabeça
inteira dentro da TV
mas logo desisto de ser séria
eu e as minhas células
mais a mais
só publicam porcarias e eu
cansada de filmes e não-filmes
prefiro desver tudo aquilo que desce
ou até aquele que certamente
nunca seria o programa preferido de Arendt
este show coroado pela brilhante
logo venturosa opinião gratuita
sem espaço nem antiguidade
mas todas as funções ligadas
pois aí se joga a salvação
do novo do velho e do normal
e nisto a casa às escuras
o cão triste na varanda
esquece
nem mais uma palavra
Ricardo Tiago Moura nasceu em Coimbra, Junho de 1978.
Publicou os livros Um gato para dois (Hariemuj, 2013), Epístolas a D. (não edições, 2013), 1 gato para 2 (não edições, 2015), pequena indústria (Tea for One, 2016) e Cruzes (Alambique, 2018). Publicou também o livro-objecto Controlo de qualidade (ed. de autor, 2017). O seu livro Espaço aéreo (Arqueria, 2014) foi publicado no Brasil, mais tarde traduzido para Espanhol e Inglês e publicado no Peru (Amotape Libros, 2015) e Reino Unido (Carnaval Press, 2017).
Dedica-se também à colagem. Vive em Køge, Dinamarca.