Entrevista a Luísa Ducla Soares
Sara Carvalho
Entrevista a Luísa Ducla Soares
Lisboa, 13 de Março de 2018
Fomos entrevistar Luísa Ducla Soares em sua casa. Fomos recebidas logo à porta pela rainha Margot, uma gata afável que deixou a rua há pouco tempo. Luísa Ducla Soares é autora de mais de 165 livros, dá nome a uma escola básica, a um jardim-escola e a 10 bibliotecas. Talvez tudo isto não tivesse sido possível se se tivesse apenas dedicado à poesia dita para adultos. De certeza que não teria merecido tantos prémios como aqueles que nos foi mostrar à despedida: um quarto de dimensões muito generosas repleto de troféus imaginados, laboriosamente pensados e construídos por muitas centenas de leitores, de escolas de todo o país – material para uma autêntica casa-museu.
JF: Gostávamos de começar com um poema seu, de que gostamos particularmente, do livro Poemas da Mentira e da Verdade.
Casamento
Casei um cigarro
com uma cigarra,
fizeram os dois
tremenda algazarra
porque o cigarro
não sabe cantar
e a cigarra
detesta fumar.
Não digam que errei
(mania antipática!)
só cumpri a lei
que manda a gramática.
JF: Dizem que há nonsensena sua poesia e que as rimas são infantis. Acha que faz sentido?
Sim, eu acho que sim, que faz. Se quer que lhe diga, gosto muito do nonsense e acho que o nonsense não é incompatível com o facto de nós termos valores, de termos uma posição cívica na vida. São coisas que podem complementar-se, e o nonsense é uma maneira também de brincar com as palavras, de brincar com o sentido das coisas. Eu andei num colégio inglês, e os ingleses vivem muito à base do nonsense, principalmente nas nursery rhymes, e acho que isso talvez me tenha influenciado e desde pequena foi uma coisa a que aderi muito. Rimas infantis... quando escrevo para crianças acho que é normal fazer rimas infantis e não procurar um estilo parecido com o estilo épico, uma espécie de Camões para criancitas.
JF: O que são rimas infantis?
Rimas infantis... quem lhe deu esse nome que está a citar é que poderá saber o que acha que são rimas infantis. Há um cancioneiro infantil português, há todo um conjunto de folclore infantil, que foi coligido pelos etnógrafos desde Adolfo Coelho, que recolheram um grande conjunto de rimas, lengalengas, poesias populares, umas que são de cariz infantil, outras que são populares, como as quadras populares, e todas elas têm um tipo de rima parecido, essencialmente assente na redondilha.
JF: Esse estilo é menor ao pé de outros ou simplesmente diferente?
É simplesmente diferente, cada um tem a sua função e cada um é dirigido a um determinado público em determinado momento. O mesmo público pode numa altura gostar de ler Saramago, e no momento seguinte achar muita piada a uma lengalenga e comprazer-se nela, e depois ler um ensaio.
JF: A sua estreia literária é com poesia para adultos e esteve ligada ao grupo da Poesia 61. Mudou de rumo depois. Porquê?
Foi por um acaso. Às vezes são estes acasos que fazem mudar a nossa vida. Eu um dia, por brincadeira, fiz um livro para crianças que se chamava A História da Papoila. Não sabia a quem haveria de o apresentar, e então fui aos Estúdios Cor e quem estava na parte editorial dos Estúdios Cor era o José Saramago, que não era nessa altura um homem famoso, era uma pessoa, não digo que ignorada, mas reconhecida principalmente como jornalista da oposição e até nem tinha uma presença assim muito fácil de lidar, porque era um homem um bocadinho fechado, um bocadinho sorumbático. Entreguei-lhe o texto e ele disse-me: olhe, deixe ficar para aí e venha cá daqui a um mês. Pensei que isto era já dar-me uma nega, mas tive sorte. Fui lá passado um mês e ele disse-me que ia publicar, que inclusivamente tinha já arranjado um ilustrador. E o livro foi publicado com uma ilustração que na altura até era considerada bastante moderna e interessante e, para minha sorte ou meu azar, pretenderam atribuir àquele livro dois prémios, o prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, que era o prémio do texto, ao meu conto, e o prémio da ilustração ao Zé Manel, o ilustrador. Acontece que eu não aceitei o prémio por razões cívicas, porque inclusivamente nessa época trabalhava para jornais, trabalhava para o Diário Popular, publicava lá diversos contos, e alguns eram cortados de alto a baixo pelo lápis azul da censura. E pensei: seria uma incongruência aceitar um prémio que me é atribuído pelo SNI - que era o Secretariado Nacional para a Informação, um órgão do governo -, aceitar um prémio de um governo que não me deixa falar. E então não aceitei. O dono da editora ficou furioso comigo - o Saramago não era o dono, era editor literário –, porque poderia lá pôr uma cintazinha a informar que o livro tinha dois prémios. Ficou só com o prémio da ilustração.
O Saramago disse-me, olhe, eu gosto do que você escreve e para o ano quero publicar aqui nesta editora seis títulos seus. Pensei: “logo seis de uma vez?”. Este homem tem a mania das grandezas, mas refleti: “porque é que não os hei-de fazer?” Fiz os seis títulos, comecei a pensar na forma de escrever para crianças, nos problemas das crianças, naquilo de que eu não gostava na literatura infantil portuguesa e não só, e no que queria fazer de diferente e passei a empenhar-me na literatura infantil, apanhei esse vírus terrível e depois nunca mais me curei. Às vezes uma pequena coisa muda a nossa vida. Estou certa de que, se não fosse este caso, se o Saramago pura e simplesmente não me dissesse mais nada, eu continuaria a fazer outro género de textos. Pensava escrever contos, romances, poesia, algo completamente diferente. Depois comecei a ser solicitada por escolas, por professores, por pessoas que se interessavam pela literatura infantil, por jornalistas que me pediam para colaborar em jornais, com a televisão.
JF: Falou do ilustrador que foi indicado pelo Saramago. Cento e sessenta e cinco livros depois, a escolha dos ilustradores dos seus livros é sempre feita pelos editores?
É conforme; maioritariamente sim. Nos primeiros livros, um autor não tem capacidade de escolha, porque eles não nos permitem, e o autor acha, já não é nada mau eles editarem-me, depois, é conforme. Nós às vezes podemos indicar, assim como eu tenho indicado com frequência, ilustradores, mas nem sempre os aceitam, porque naturalmente vou escolher aqueles de que gosto mais, que são muitas vezes aqueles que são também premiados, aqueles que têm muitas solicitações, alguns que trabalham para publicidade, onde ganham mais. Já uma vez esperei três anos por um ilustrador, preferi ficar na lista de espera e o livro ser ilustrado por ele. Outras vezes o que acontece é que esses ilustradores são muito caros, e então a editora diz logo: “não, porque ultrapassa as nossas possibilidades”. Depois os editores também têm uma ideia, que eu não acho que seja descabida, de que é necessário dar oportunidade aos novos. Claro que todos os óptimos ilustradores já foram novos, tiveram de ter a sua oportunidade, se não lhes dessem eles provavelmente nunca teriam sido grandes ilustradores, agora entre os novos pode haver três em cem que virão a ser bons, e nos restantes haverá cinquenta médios e os outros são péssimos. Já me tem acontecido ajudar a lançar notáveis ilustradores mas também já tenho tido livros destruídos por outros.
JF: Há pouco disse que começou com poesia para adultos e quando começou a empenhar-se na causa da literatura infantil também quis mudar algumas coisas de que não gostava, do que já existia, porquê? Era um entendimento geral do que era a literatura infantil?
Porque a literatura infantil revela uma maneira de estar na vida, porque a literatura infantil acho que espelha a nossa posição perante os acontecimentos do mundo, perante a moral vigente, perante tudo o que acontece.
JF: Do que é que não gostava e que acha que tentou fazer diferente?
Eu, por exemplo, gosto de histórias tradicionais, e acho que elas têm motivos que são universais e que passam por todas as gerações, e que há nelas um certo tradicionalismo que não me ofende. Agora, em muita literatura datada, digamos, há uma maneira de ver o mundo, que por exemplo se identificava com o Estado Novo. Isso a mim não me agradava, porque achava que a maneira que eu tinha de entender o mundo devia ser também apresentada às crianças. Nessa altura, fiz por exemplo um livro que se chamava O Soldado João, que é um livro contra a guerra, e nós estávamos em guerra. Apresenta um soldado que não gosta da guerra, que procura de toda a maneira destruir o espírito bélico, considerando-o ridiculamente divertido. Eu achava que num país que empenhou toda a sua juventude numa causa sem saída, e à qual eu não aderia, era importante as crianças também pensarem nisso, não deviam pura e simplesmente olhar para os noticiários da televisão que as intoxicavam.
JF: Tem influências de outras literaturas?
Tenho influências de tudo aquilo que leio, vejo e oiço.
JF: E de autores de literatura infantil? Algum que a marcou especialmente?
Não acho que tenha havido qualquer autor de literatura infantil que me tenha marcado especialmente. Posso com certeza tirar influências deste ou daquela, um bocadinho de cada um, agora um específico acho que não.
JF: E influências gerais da literatura?
Foram os poetas, em geral, porque eu gosto muito de poesia.
JF: E porque é que gosta de poesia?
A primeira maneira que tive de me exprimir foi através da poesia, comecei a escrever poesia com dez anos. Com dez anos fiz um livrinho de poesia que não editei, felizmente. E gosto de poesia porquê? Isso é uma coisa difícil de explicar, eu acho que gosto de poesia porque ela é uma maneira muito íntima de contactar com os outros, vivo-a como receptor ou como emissor. Comecei por gostar de determinados poetas, depois posso ter evoluído um pouco na minha maneira de pensar e de sentir, mas, no fundo, acho que continuo a gostar basicamente dos mesmos, sei lá, do Fernando Pessoa, do António Gedeão, do Cesário Verde, são os poetas de que eu mais gosto.
JF: Usa a poesia no seu dia-a-dia?
Sim, imenso. A poesia teve também influência na minha vida, porque o meu pai não era escritor, era médico, mas sabia de cor muita poesia - sabia poesia e sabia lengalengas e coisas populares em verso. Na minha infância, a única maneira que eu tinha de poder conversar com o meu pai era ir com ele de automóvel ver doentes, era uma época em que os médicos iam a casa ver os doentes. Ele era um homem muito ocupado, saía de manhã cedo para o hospital, vinha à noite, ainda estudava sempre depois do jantar, só uns bocadinhos aos fim de semana é que podia estar com ele, mas eu tinha uma ligação muito profunda com o meu pai. Então conversava com o meu pai entre a casa de um doente e outro, saía de minha casa, ia até à do doente, sempre a conversar, depois ficava parada no carro, enquanto ele via o doente, depois seguia para um hospital - nos hospitais eu ainda entrava, falava com os doentes - e pelo caminho ele recitava-me poesia. As minhas mais antigas memórias de poesia eram essas. O poeta que o meu pai mais recitava era o Guerra Junqueiro. Houve uma altura em que eu sabia de cor vários trechos de “A Velhice do Padre Eterno”, e não era uma poesia própria para crianças, mas era uma poesia de tal maneira forte que me ficava no ouvido e de certa maneira me encantava.
JF: Consegue eleger um poema favorito?
Eu sei lá, há tantos...a “Pedra Filosofal”, do António Gedeão é um poema de que eu gosto muito, também gosto muito de um do Jorge de Sena, que é “Uma Pequenina Luz”, gosto de “O Sentimento dum Ocidental”, do Cesário... são tantos os poemas de que gosto...
JF: Acha que há uma idade certa para se começar a aprender poesia? Como é que se deve falar de um poema?
Acho que praticamente todos os miúdos começam a interessar-se pela poesia, aqueles que se interessam, por volta dos dez, onze ou doze anos. A Maria Alberta Menéres até tem um livro chamado O poeta faz-se aos 10 anose é uma verdade. Eu fiz um livro intitulado De que são feitos os sonhos, para o qual entrevistei uma série larga de escritores de literatura infantil e lhes perguntei como é que eles tinham começado a interessar-se pela lit|eratura, e praticamente começaram todos nessa idade a gostar de poesia e a escrevê-la. Por exemplo, o Gedeão continuou Os Lusíadas com essa idade. Estive a fazer ainda ontem uma nota sobre o António Mota, pediram-me para fazer o prefácio de um áudio livro que tem canções dele musicadas. Debrucei-me sobre a sua biografia e verifiquei que publicou as primeiras coisas com treze anos num jornal do Norte.
JF: E como acha que se pode ensinar a fazer uma análise de um poema?
Não sei porque não sou professora, eu tenho prazer em ler poemas e faço poemas, detesto analisá-los.
JF: E costuma ler crítica?
Não tenho paciência para isso, eu gosto de usufruir das coisas.
JF: E acha que uma análise de um poema pode comprometer o prazer da leitura?
Acho que não, não compromete. Agora veja a minha situação: eu tenho setenta e oito anos, e agora o que é que eu tenho de fazer? Tenho de escolher o que quero - se quero pegar num poema e usufruir da sua beleza, ou se prefiro ver como o entendem e analisam os cérebros de uns especialistas... Ver como é que eles o dissecaram. Nem sempre me apetece remexer nas articulações, nas tripas dos poemas, embora esse trabalho também seja útil para quem escreve.
JF: E antes acompanhava a crítica que se fazia?
Noutras fases da minha vida, quando tinha uns vinte ou trinta, talvez tivesse essa posição, depois deixei de a ter, porque o meu tempo era sempre muito escasso, trabalhei sempre em muitas coisas. Comecei a dar aulas ainda era estudante, depois fui tradutora, trabalhei para jornais, fui directora de uma revista, depois estive no Ministério da Educação, depois trabalhei trinta anos na Biblioteca Nacional, passei a vida toda a trabalhar, depois ainda tinha a minha casa, os meus filhos, essa coisa toda. Só tinha tempo para começar a escrever a partir das dez da noite, ou aos fins-de-semana, mas aos fins-de-semana também tinha de fazer programas com os meus filhos. Tive de focar a minha atenção naquilo que achava mais importante.
JF: Acha que é importante não ser escritora a tempo inteiro?
Acho, porque nós assim temos uma experiência de vida mais parecida com a da pessoa normal, não estamos lá na torre de marfim, vivemos os problemas da pessoa comum. Claro que isso também nos tira muitas horas.
JF: E os trabalhos que teve foram inspiradores? Eram bons para compatibilizar com a sua actividade literária?
Sim, por exemplo, quando estive na Biblioteca Nacional, tive uma grande oportunidade de conhecer muita coisa, de estar em contacto com imensos livros, tinha mesmo de estar em contacto com eles. Durante vários anos fui a responsável pela informação bibliográfica daquela biblioteca. Recebia pedidos de investigadores de todo o mundo, principalmente de pessoas universitárias, sobre os mais diversos temas, a maior parte ligados à literatura e à história, e tive de ler imensa coisa para dar resposta aos pedidos que me faziam. Convivi com os livros de maneira muito íntima. No fim, o tempo que tinha para mim era bastante reduzido.
JF: Esse foi um trabalho feliz?
De certo modo, mas também tanto tinha de fazer pesquisas interessantes como outras menos interessantes, porque podia ter pedidos sobre os temas mais diversos. Por exemplo, podia ter um pedido sobre os mosquitos que existiam na Guiné. Em seguida, fazia pesquisas sobre cata-ventos, mais tarde procurava o 1º livro português em que apareceram referências aos cangurus da Austrália (para averiguar se os portugueses teriam sido, como alguns afirmam, os seus descobridores).
JF: Isso não pode ser um tema bom para um poema infantil?
Eu tirei muitas ideias de trabalhos que me passavam pelas mãos, e também tive muitos trabalhos de etnografia, havia muitas pessoas interessadas nisso, o que foi uma coisa que despoletou o meu gosto por fazer recolhas. Fiz recolhas de muitas lengalengas, publiquei quatro livros de lengalengas, fiz um de adivinhas, fiz outro de trava-línguas, de contos em verso, de histórias tradicionais. De certa maneira, eu tinha de remexer naqueles materiais, e depois dava-me vontade de continuar, ficava na hora de almoço, ficava depois da hora de saída. Eu tinha a sorte de até ter no meu gabinete um elevador directo para os pisos, nem tinha de ir pedir a outro sítio: metia a senha no meu gabinete e os livros vinham ter ali. Por acaso acho que isso foi uma sorte que tive, mas também trabalhava muito.
JF: Há pouco referiu todo esse trabalho de levantamento das lengalengas. Em relação à literatura infanto-juvenil, acha que ainda existe uma certa ideia de que é uma gaveta menor da literatura ou já menos?
Já menos, acho que muito menos. Até porque, reparem, agora, grandes figuras da literatura para adultos estão a escrever para crianças, como o Mia Couto, o Agualusa, a Sophia escrevia, o Saramago também tem um livro, e, aliás, também antes o Aquilino Ribeiro tem uma série deles, o António Sérgio tem, até o Antero de Quental também tinha, a Maria Amália Vaz de Carvalho, uma data de gente da geração de 70, que foram, digamos, aqueles que iniciaram a literatura infantil.
JF: Enquanto poetisa tem alguma embirração linguística e / ou poética (palavra, construção, figura de estilo, etc.)?
Não tenho embirrações propriamente com nada.
JF: E alguma figura de estilo ou palavra por que tenha especial apreço? Ou forma poética?
Se quer que lhe diga não, eu gosto de variar muito, gosto de conhecer coisas completamente díspares umas das outras, e não tenho embirrações específicas. Eu saí desse grupo, da Poesia 61, justamente por achar que eles escreviam num ambiente cada vez mais fechado, que estavam como as mulas que usam palas nos olhos.
JF: Porque achava que havia um programa?
Porque eles tinham enveredado por um experimentalismo que significava o ódio por grandes figuras. Por exemplo o José Régio: eles queriam destruir o José Régio assim como o Almada tinha feito com o Júlio Dantas, e não era justo, o Régio era muito melhor poeta do que eles. E eu pensei que aquele não era o meu ideário.
JF: Era também uma questão de afirmação do grupo?
Sim, pois claro, é muito mais giro as pessoas juntarem-se sob um grupo não sei quê, com o ideário não sei quê, que se torna conhecido por isso.
JF: Mas na época funcionava tudo assim, ou se era neorrealista ou se era surrealista. E a Poesia 61 nasceu assim?
Exacto. Hoje as pessoas são mais livres, não se metem tão necessariamente numa panelinha.
JF: Acha que a Poesia 61 condicionava o que era para si a poesia, ou o que deveria ser a poesia?
A experiência é algo de bom, acho que se devem fazer experiências, agora acho que eles depois também enveredaram por um certo experimentalismo contra uma forma mais directa de apreender as coisas, e se para eles uma coisa era directa, estava logo mal: quanto mais enrodilhada melhor. Pode-se utilizar trabalhos de linguagem que permitam uma comunicação muito mais concreta, de ideias, de sentimentos; agora ser a linguagem o fito essencial da nossa comunicação acho que não, pode-se brincar com isso, não sou contra, tudo é permitido, toda a brincadeira, porque não?, mas não é o que me interessa.
JF: Um certo regresso ao conceptismo?
Exactamente, então para isso vão para o século XVII. E eu prejudiquei-me, porque teria sido melhor para mim, do ponto de vista de afirmação literária, pertencer ao grupo 61.
JF: Nunca mais voltou a pensar fazer poesia para adultos?
Sim, tenho feito, por exemplo o livro A Cavalo no Tempo inclui alguns poemas que não escrevi para crianças, nem sequer para adolescentes, e que podiam estar num livro para adultos, mas acho que os mais novos os podem ler. E depois faço outros que não publico. Já me falaram de diversas editoras, mas não tenho interesse em dá-los a lume, porque muitas vezes a poesia também acaba por ter referências um pouco confessionais e há partes da minha vida que me interessa resguardar.
JF: E tem algum poema ou livro seu de que goste particularmente?
Livro de que goste especialmente de poesia é o A Cavalo no Tempo. E os Poemas da Mentira e da Verdade.
JF: Acha que os seus principais leitores são só infanto-juvenis ou já vai percebendo que mesmo estando sob este rótulo chega a outros?
Eu acho que chego a outras pessoas, começando pelos professores.
JF: Acha relevante, em termos de reconhecimento, que os seus livros estejam nos Programas, no Plano Nacional de Leitura?
Eu acho que sim, é um reconhecimento. Toda a gente sabe que o Plano Nacional de Leitura teve uma função muito importante para o desenvolvimento do gosto pela leitura. Porque dantes não quer dizer que as pessoas não lessem, mas acho que liam muito menos. Agora, isto de ler também é uma moda, e se se investe numa determinada política cultural, os professores procuram segui-la. E os pais, os amigos das crianças também. E são estes que compram. Se vão a uma livraria e vêem um livro que tem o selo do Plano Nacional de Leitura podem pensar que ele foi aferido por uma espécie de ASAE que separa o trigo do joio. O que nem sempre é completamente verdade. Há excelentes livros que não pertencem ao Plano e outros que lá foram parar indevidamente como um livro de poemas para adultos de Alice Vieira que, só por ser dessa autora, transitou para a lista dos selecionados, sem sequer ser lido.
JF: Disse que também trabalhou algum tempo como tradutora?
De francês, de inglês e de italiano.
JF: Chegou a traduzir poesia, não foi? Como foi essa experiência?
Traduzi do Roald Dahl, Histórias em verso para meninos perversos, foi uma tradução bem difícil, porque traduzi tudo em verso rimado, já tinham pedido a tradução a duas pessoas que não a tinham aceitado.
JF: No início da entrevista falou da influência das nursery rhymes, que é uma tradição que não temos tanto em Portugal...
Nós temos, mas não é suficientemente valorizada.
JF: Acha que essa é uma escola importante para se gostar de poesia?
Acho que, para uma iniciação à poesia, sim, porque essas nursery rhymes levam ao encantamento pela palavra. E o encantamento pela palavra e pelo ritmo tem a ver com a poesia.
JF: Temos no site uma secção de curiosidades literárias. Uma das primeiras que nos contaram foi sobre o José Blanc de Portugal, que tinha um quarto, chamado inferno, onde guardava os livros de que não gostava, sobretudo neo-realistas. Tem alguma?
Eu faço algo melhor: ali no jardim da Quinta das Conchas, está a ver qual é?, há umas casinhas em que se podem pôr ou tirar livros. Tudo o que não tenciono ler mais levo para lá. E eles desaparecem.