Bernardo Palmeirim
Nuno Amado
Ler um poema é, antes de mais, prestar atenção a usos peculiares de palavras escritas.
É um prazer ler certos poemas que não parecem requerer mais do que uma leitura superficial, mas até estes, por vezes, nos surpreendem e nos põem a trabalhar. Passamos tempo a olhar para palavras e espaçamentos, pensando no que estarão aquelas palavras a fazer ali, dispostas exactamente daquela maneira. Mas se os nossos pensamentos se afastam das palavras na página (se nos distraímos), então aquilo a que chamamos ‘o significado’ – a nossa relação com aquelas palavras – evapora. Relacionamo-nos com poemas e (não) gostamos deles por uma imensidade de razões. Não há uma razão certa; mas há umas melhores que outras. E saber com clareza quais são essas razões é a marca de um leitor consciente.
Perdemo-nos e recomeçamos. A tentativa de ligar pontas soltas lança os diligentes e os enfeitiçados a dar outra volta ao carrossel, pois, confrontados com pormenores estranhos, fazemos perguntas. Desta maneira, os poemas podem confundir-nos até ao auto-conhecimento, pois a falta de respostas finais (o papel não responde a perguntas) desafia-nos para uma viagem.
Mas a particularidade do que é ler um poema é também permeada pela ideia abstracta da ‘poesia’, pois os poemas ressoam dentro das nossas expectativas desse conceito (uma amálgama de experiências de leitura passadas – que se transforma à medida que lemos mais poemas). Ler é um jogo cujas ‘regras’ (i.e. as nossas expectativas do que são poemas) estão sempre a mudar. E ainda bem – senão o jogo seria uma chatice. É uma caixa de bombons.
Uma vez que os poemas são coisas feitas de palavras, a forma como nos relacionamos com as propriedades destes objectos é diferente de como nos relacionamos com, por exemplo, a pedra em forma de estátua. Não lemos, literalmente, nem pedras nem estátuas. As palavras carregam sentidos convencionais; e os poemas comportam articulações de palavras – quase sempre num estado de jogo. O que é, pois, o jogo poético? Como insistiu Wittgenstein, uma prática entende-se melhor quando é comparada a outros ‘jogos de linguagem’ da mesma família ou estilo. Durante anos comparei o que é ler poemas a rezar – comparação que ajudou a tornar visíveis várias características significantes. Uma comparação com a canção – uma forma híbrida, de música e palavras – também nos pode ajudar a delinear alguns traços formais destas estranhas coisas chamadas poemas.
Muitos poemas são também formas híbridas, recorrendo a diferentes níveis e padrões de ritmo e rima. Em poemas onde há jogo musical, o ‘sentido’ torna-se mais alusivo. À medida que os sentidos das palavras ficam ‘menos literais’, os poemas tornam-se numa mistura ambígua de sentido e falta dele. Em canções, as palavras não precisam de ‘significar’ para funcionar bem – um ‘ooh ooh’ sem sentido que seja cantado de certa maneira pode ser precisamente aquilo de que a canção precisa para funcionar. Como diz David Byrne em How Music Works, “a diferença entre um som de ooh e um ahh e, um B e um th faz, presumo, parte integral da emoção que a estória quer expressar.”
Play. Carregamos no play e a música inunda os nossos ouvidos. As canções apoderam-se mais facilmente da nossa atenção porque a música é uma forma-sensual carregada de poder emocional. Mas embora as letras de canções operem contra um fundo (ou superfície) de música (que as dota de um contexto atitudinal), as palavras num poema estão tipicamente cercadas de espaço vazio. Nada salta para fora de um poema: um poema não tem voz até ser lido. (A metáfora de Heidegger tardio para a ‘verdadeira escrita/leitura poética’ é – aí está – cantar.)
Canções e poemas são formas híbridas, feitas de elementos musicais e semânticos, e é por isso que adoro os dois – pela feliz e surpreendente descoberta de usos extraordinários destes materiais bizarros e comunicativos que são os sons e as palavras. É uma abertura ao jogo de palavras que inaugura a atenção poética: ler é antes de mais sair para jogar, para descobrir que jogo é este que se apresenta. Claro está que também podemos vir a descobrir que, ao fim e ao cabo, estamos a lidar com mais do que um simples jogo.
Bernardo Palmeirim
Bernardo Palmeirim é leitor de inglês na FLUL, onde ensina Língua Inglesa e Escrita Criativa em inglês. Doutorou-se em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa em 2014, com a tese “What is Poetic Attention”. Os seus interesses incluem poesia, contos, teoria da literatura, filosofia da religião e da linguagem. Apaixonado por literatura e música, é também cantautor e toca em duas bandas.