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Frederico Pedreira

Número Especial

Frederico Pedreira

Nuno Amado

Interpretar um poema é um pouco como conversar com um velho tio excêntrico. Tal como acontece com o poema, todos nós sabemos que este tio nos irá surpreender. Mas é uma surpresa cansada, ou, melhor dizendo, habituada, a que ele nos oferece. Na visita à casa de família, já todos nos habituámos a considerá-lo excêntrico, ainda que ele use a linguagem familiar e alegue conhecer-nos a todos de ginjeira. Não conhece, naturalmente, mas procura convencer-nos disso. Porque o tio excêntrico é dono de uma cegueira muito particular. Para que nada quebre o ritmo do seu riso, da sua boa-disposição um pouco alterada, é importante que ele continue a olhar para si mesmo, eternamente encantado com o branco dos seus dentes ou com o brilho dos seus botões de punho, cheio de zelo pelos gestos que faz, pela forma como coloca as palavras, entre a graça e o comentário cáustico, mesmo fingindo que nos olha nos olhos (é importante que não tire os olhos de nós, porque só assim nos convence de que está a falar connosco, e não consigo mesmo, que é o que na realidade acontece). A companhia do tio excêntrico é sempre suportável porque nos lisonjeia com o dom da palavra e porque finge que quer saber o que se passa connosco, quando o seu desejo mais fundo é pôr-nos a par do que se passa com ele, homem afinal tão solitário, o mais solitário da família, apesar do espalhafato com que nos entra em casa. O tio excêntrico honra-nos com a sua presença porque anda sempre bem vestido, elegante e perfumado, apesar de ser pouco mais do que um desesperado. E ouvi-lo é sempre um pouco como interpretar um poema, pois ele fala com uma autoridade que não lhe é devida, e quando o questionamos limita-se a encolher os ombros e a dizer “Sempre fui assim”, tal como o poema nunca sabe justificar a sua razão de ser. O tio e o poema estão sempre a encolher os ombros, incapazes de levar uma conversa do princípio ao fim. Como o tio excêntrico, os versos impressionam-nos pela sua excitação um pouco inconveniente, pela forma como berram quando todos falam baixo, em suma, pela sua personalidade exagerada, que por querer falar tanto acaba por se perder num sorriso franco e tolo, em mímicas desengonçadas, em histórias muito mal contadas, em afectações comoventes pelo fracasso em que acabam. Quem interpreta poemas fica sempre com uma ideia do que acabou de ler, do mesmo modo que alguém que visita o local de um acidente minutos depois retém uma ideia sobre-excitada do que acabou de se passar. O mesmo se poderia dizer acerca do que acontece após uma conversa com o tio excêntrico, de passagem pela casa de família, num aniversário ou noutra ocasião festiva: ficamos um pouco aturdidos com a anarquia do discurso proferido por aquele homem janota, que entretanto já vemos a gesticular febrilmente diante de outro ouvinte igualmente pasmado e entretido. No fim da conversa, apodera-se de nós uma sensação ambivalente, e então perguntamos: acabei de esbanjar cinco minutos do meu tempo com um excêntrico ou será aquele tio a pessoa que mais me entende? Nesse encontro, obrigamo-nos a uma rápida sucessão de associações, de adesões a um certo tipo de humor, a uma tolerância à tragédia desenfreada, mas quando deixamos a companhia do tio excêntrico ou do poema (o que vai dar no mesmo), não nos lembramos deles como motivos sérios na nossa educação sentimental. O que são eles, afinal? Saberia a pouco resumi-los a um divertimento. Os olhos esbugalhados do tio excêntrico (ou do poema) quando fala connosco não nos permitiriam semelhante dislate. Talvez a nossa sorte seja a de não termos de responder à pergunta “Por que me importa este poema?”, isto porque o poema é uma excentricidade da linguagem, e dizemo-lo com o mesmo afecto e despreocupação com que nos habituámos em família a falar do tio excêntrico como “aquela ave rara”. Lá vai ele, dizemos, espero que volte um dia com mais tempo: há-de explicar-me o que queria dizer com tal e tal expressão. E ao repetirmos para connosco esse desejo, sabemos que nunca se irá realizar. É essa a graça do poema (e do tio): tenta dizer tudo e nunca explica nada. Pode dar-se a esse luxo porque sabe que o vêem como um excêntrico.

 

Frederico Pedreira


Frederico Pedreira doutorou-se no Programa em Teoria da Literatura (FLUL).  Traduziu autores como G. K. Chesterton, Oscar Wilde, W. B. Yeats, Herman Melville e Charles Dickens. Publicou, entre outros, os livros de poesia Presa Comum (Relógio D’Água, 2015) e A Noite Inteira (Relógio D’Água, 2017), e o livro de ensaios Uma Aproximação à Estranheza (INCM, 2017).