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Pedro Sobrado

Número Especial

Pedro Sobrado

Nuno Amado

Escola de banditismo

 

Interpretar um poema é lutar com um anjo que age como um bandido. Talvez todos os textos que importam contenham imagens, alegorias sobre a leitura e a interpretação. No texto primeiro, o Génesis, encontramos a história da luta de Jacob com o anjo. É um episódio enigmático, que antecede o relato cinematográfico da reconciliação de Jacob com o seu gémeo, Esaú, a quem anos antes traíra. Durante a noite, a sós, Jacob é acometido por um desconhecido, com quem luta até de madrugada. Que pretende este ser, que a narrativa sagrada descreve tão-somente como “um homem”, embora o Midrash e a hermenêutica cristã o tomem por anjo? Ninguém sabe o que ele quer, nem Jacob. Os dois lutam em silêncio, até de madrugada. Vendo que não leva a melhor, o desconhecido fere Jacob numa perna, atingindo-lhe o nervo ciático. Deixa-o coxo para o resto dos seus dias. Ainda assim, o filho de Isaac resiste, retém o agressor, que lhe pede: “Deixa-me partir porque já rompe a aurora.” É como se a luz da alvorada pudesse quebrar um encantamento, votá-lo a um estado de vulnerabilidade ou impotência. Jacob impõe condições: “Não te deixarei partir enquanto não me abençoares.” Em troca da sua alforria, o salteador concede-lhe uma dádiva: um novo nome, que se tornará símbolo da vocação de todo um povo. “O teu nome não será mais Jacob, mas Israel, porque combateste contra Deus e contra os homens e conseguiste resistir.” Jacob ganha uma nova identidade. Quando o Sol se levanta no horizonte, sai ao encontro do irmão desavindo: coxeando.

Esta modalidade de combate a que chamamos interpretação simula a luta de Jacob com o anjo. Em primeiro lugar, a interpretação ocorre na noite, culminando, se bem-sucedida, no lusco-fusco da alvorada: começamos na ignorância, no desconhecimento (por vezes de nós próprios, ou do nosso propósito), não dispomos de toda a informação, nunca chegamos à clareza, ao ponto do dia em que o Sol triunfa. Apenas mais tarde – amanhã, dentro de semanas, meses ou muito depois – alcançamos a clarividência sobre o que procurávamos, sobre aspectos da obra a que nos dedicámos, aspectos que se nos afiguravam opacos e que então se revelam inesperadamente transparentes.

Em segundo lugar, a interpretação assemelha-se a uma luta corpo-a-corpo. Lutamos com o poema, retemo-lo para além do que é razoável, forçamo-lo a conceder-nos a sua bênção, seja ele um anjo ou um malfeitor. Num livro sobre os Salmos, C.S. Lewis diz que no exacto lugar onde nos debatemos com uma dificuldade nos aguarda uma descoberta. Assim que o poema nos faça, ainda que relutantemente, uma concessão, libertamo-lo. Por vezes, dá-nos o que não julgávamos que pudesse dar. Este combate é também um abraço nocturno: já não sabemos qual é o corpo do leitor e o corpo do texto, os respectivos contornos esvaem-se. A hora da leitura é a hora em que não sabemos nada um do outro, dos limites um do outro: reside este particular sentido no poema, ou é em mim, leitor, que ele mora, tendo aguardado apenas a ocasião para se manifestar? Lemos o poema, lemo-nos no poema.

Jacob sai ferido do combate. A experiência de interpretação deixa-nos uma marca, uma ferida. Um poema que nos deixa a andar da mesma maneira não foi verdadeiramente lido. O poema não nos dá apenas a sua bênção, a sua consolação — dá-nos uma sova também. Acabamos coxos, ou vesgos. Por vezes, damos entrada nos cuidados intensivos. Pensamos na leitura como uma forma de ampliação, de fortalecimento até. Mas a debilitação das nossas faculdades — inclusive da nossa potência de explicar — é talvez o que um poema nos pode oferecer, porque nos confronta com a nossa própria falha, porque descobre, aos nossos próprios olhos, a radical insuficiência de todo o nome. Coxeamos, rumo a uma reconciliação.

 

Pedro Sobrado


Pedro Sobrado.  Porto, 1976. É licenciado em Ciências da Comunicação e mestre em Estudos de Teatro. Trabalhou no departamento de Edições do Teatro Nacional São João, assegurando a coordenação editorial de livros, programas de sala e outras publicações. Tem participado como dramaturgista em diversos espectáculos teatrais de Nuno Carinhas e de Ricardo Pais. É, desde Fevereiro de 2018, presidente do Conselho de Administração do TNSJ. É ainda professor do curso de licenciatura em Artes Dramáticas – Formação de Actores da Universidade Lusófona do Porto. Dispersivamente, tem escrito sobre autores como Gil Vicente, Almada Negreiros, Bertolt Brecht, Walter Benjamin, Karl Kraus, Robert Walser, Flannery O’Connor, bem como sobre temas bíblicos e teológicos.