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Nuno Amado

Número Especial

Nuno Amado

Nuno Amado

Interpretar um poema é como interpretar um lance de futebol, uma rixa à porta de uma discoteca, uma troca de olhares num transporte público ou outra coisa qualquer que, não obstante as diferenças, envolva razões, atitudes, expectativas e tudo aquilo a que estamos habituados quando lidamos com pessoas.

Tendemos a achar que poemas, e outros fenómenos artísticos complexos, resistem mais à interpretação do que qualquer uma destas coisas e do que quaisquer acontecimentos banais do dia-a-dia. Mas há lances de futebol que geram muita discussão, e nem sempre é fácil perceber o que provocou uma rixa. Quando a situação envolve multidões, então, é particularmente difícil reparar em pormenores. Há uns anos, houve um arrastão em Carcavelos que parece que afinal não existiu. Foram precisas algumas semanas para se perceber que os quinhentos envolvidos não eram, na sua maioria, saqueadores de chinelos mas veraneantes assustados. Procurar compreender um poema não é muito diferente de procurar compreender o que se passou nesse dia na praia. A primeira impressão é, muitas vezes, falseada pelas expectativas de partida, e só após um punhado de releituras, alguma investigação, testemunhos de fontes diferentes e a formulação de novas hipóteses chegamos a um resultado minimamente satisfatório. Às vezes, é certo, não se chega a lado nenhum. Mas é errado supor que fracassamos por não sabermos aplicar alquimicamente as leis gerais da interpretação de poemas que se aprendem em salas de aulas ou por não sermos doutorados em esperteza saloia.

Interpretar um poema consiste sobretudo em fazer perguntas difíceis e em tentar dar-lhes resposta. Não há modo de sabermos se as respostas que arranjamos são boas, e ainda menos se as perguntas a que respondemos são as mais certeiras, se não haveria outras melhores e se, uma vez feitas, não suscitariam melhores respostas. Podemos progredir apenas por tentativa e erro, e confiando apenas na nossa competência para fazer perguntas e dar respostas. E, claro, a tarefa pode ser tão minuciosa quanto a de um garimpeiro descalço à procura de lascas douradas entre as lamas de um riacho. Às vezes identificamos pequenas anomalias (a posição de uma vírgula, um verso mal medido, uma discordância gramatical) ou mesmo incoerências gritantes, como aquela famosa descrição da velha Europa disposta sobre os cotovelos a olhar para ocidente na qual os olhos são gregos mas “o rosto com que fita é Portugal”, e damos por nós a elaborar justificações para elas. Mas é exactamente a isso que se chama ‘interpretar’.  Podemos achar que liberdades poéticas não se discutem, mas perante uma descrição tão geograficamente precisa como a do poema de Pessoa, por exemplo, é difícil passarmos por aqueles olhos tão afastados do rosto onde deveriam estar sem pelo menos franzirmos o sobrolho à desarrumação anatómica. Interpretar é muitas vezes dar resposta a desconfianças ou embirrações destas.

Na verdade, todos os dias as pessoas exercem as faculdades de que fazem uso quando interpretam poemas, e exercem-nas nas actividades mais corriqueiras. Quando um rapaz troca olhares com uma rapariga, por exemplo, e tenta adivinhar o sentido desse acontecimento. ‘O que será que acabou de acontecer?’, pergunta a si mesmo. A não ser em casos de optimismo ou pessimismo extremo, nos quais a pergunta nem se coloca, a investigação silenciosa que se segue é quase sempre inconclusiva. E, quase sem querer, o rapaz dá por si a fazer figas para que esse contacto ocular se repita. Quando a reza compensa, o que nem sempre acontece, procura prestar atenção a alguns pormenores, a um ligeiro sorriso, a uma reacção de embaraço, a uma fixação ocular mais demorada, etc.. Mas, recolhidos os novos dados, o problema mantém-se. ‘Por que motivo desviou o olhar assim que me percebeu a olhar para ela?’, interroga-se. Há várias hipóteses: a rapariga pode ter gostado do que viu, e ter desviado o olhar por pudor, estratégia de sedução ou mero reflexo, mas também pode não ter gostado, e nesse caso teria desviado o olhar por desconforto, ou para desencorajar o rapaz. ‘E como explicar a audácia de um terceiro olhar, desta vez mais demorado?’, volta o rapaz a indagar. ‘Terei eu despertado nela algum interesse ou apenas curiosidade? Terá ela perdido de súbito a vergonha, não se importando agora em manter o contacto ocular, ou apenas me desafia por me ter visto a olhar para ela? Quererá, com isto, mostrar-me que lhe agrado, ou não quererá mostrar nada, e o à-vontade com que olha para mim, como que me afrontando por continuar a olhar para ela, apenas significa que não exerço sobre ela qualquer efeito? Serão estes olhares genuínos, e já teria ela reparado em mim antes de eu reparar nela, ou serão apenas consequência dos meus?’

Quando interpretamos um poema, fazemos precisamente este tipo de perguntas. Ninguém nos responde, e não contamos senão com a nossa intuição para ir eliminando hipóteses. Se mantivermos a atenção; se insistirmos em olhar para o poema de novos ângulos, tentando surpreender num pequeno detalhe uma evidência irrefutável; se não recusarmos nenhuma possibilidade e soubermos distinguir as que nos são mais úteis, separando o que faz mais sentido do que faz menos, o que é provável do que não é; se continuarmos a fazer perguntas, e as refizermos quando não nos ajudam a perceber nada; se, em suma, não sucumbirmos às dificuldades, que são próprias de qualquer exercício especulativo, e não nos esquecermos de que, com algum esforço, talvez descubramos alguma coisa importante, é bem possível que cheguemos a uma interpretação que não nos envergonhe.

 

Nuno Amado


Nuno Amado é professor na Universidade Católica Portuguesa e escreveu uma tese sobre Ricardo Reis. Nunca aconselhou um poema a ninguém, mas admite abrir uma excepção quando descobrir um que possa ajudar as pessoas a serem mais felizes.