Teresa Bartolomei
Nuno Amado
A arte japonesa de selecionar pintainhos
Interpretar, ler um poema é, em geral, render-se a um falso começo que não se deixou corrigir ao longo do caminho e por isso mesmo chegou a um onde que não havia e que nenhum antes podia prever.
Eu gosto mesmo muito de cair no ardil dos poemas, por isso este texto tinha que partir de um falso começo recebido e não previsto: uma história que me foi contada na Varanda do Criz (o meu amigo João pode dizer-vos onde fica. Ele recomenda as chanfanas, enquanto o meu primo Luís prefere os pastéis de bacalhau. O leitor escolherá, porque nesta discordância dá-se tudo o que tenho para dizer). Se também gostarem de poemas não me perguntarão por que razão começo assim. Se o soubesse, não iria a lado nenhum, como acontece a todos os poetas que sabem desde o começo onde vão acabar e aos leitores que pretendem ser anteriores e não posteriores à própria leitura.
Foi o Carlos que me contou a história dos japoneses que nos aviários de Tondela selecionavam pintainhos. Explicou-me que os japoneses pegavam neles, os viravam de patas para o ar e logo adivinhavam o que para a boa gente da terra era imperscrutável: reconheciam-lhes o sexo. Separavam os frangos futuros das futuras galinhas, endereçando-os para o seu diferente destino alimentar: eles a engordar rapidamente para serem comidos, elas a crescer lentamente para se tornarem maioritariamente mães estéreis (de ovos virgens sem futuro geracional).
Ninguém da terra tinha a rapidez e a precisão dos japoneses. A fita com os pintainhos corria, e a separação procedia inexorável e infalível. O deus japonês do juízo não deixa margens de erro.
Perguntei-me, ao ouvir a história, quem seria o japonês dela: se seria o poeta este decifrador da diferença escondida no corpo das palavras, diferença in nuce, que se há de desenvolver pela leitura, e que mais ninguém consegue reconhecer antes que se manifeste; ou se seria o crítico, que separa poemas que vivem só para si, sem futuro de ovo, dos poemas-mãe, que se reproduzem, alguns até em ovos que se tornam animais, fecundados pela violência exterior que se concretiza no momento em que um ser diferente, que quebra a unidade e a multiplica, os acolhe.
Não cheguei a conclusão nenhuma. Não sei se a arte japonesa de discernir diferenças escondidas nos corpos das palavras é uma arte poética ou hermenêutica, de autor ou de leitor, como não sei se as duas podem verdadeiramente ser separadas: crítico-frango e poeta-mãe, quem perdura no espaço de uma leitura vs. quem se abisma na forma fechada de um ovo-poema.
Não sou japonês, não sei distinguir a diferença à primeira, e fiquei hesitante quando me pediram para escolher entre escrever uma poética ou uma hermenêutica – será que sei decidir-me?
Mas há uma coisa que sei, de certeza, e é que a imagem dos japoneses do aviário tomou posse do meu texto e de todas as ideias que tinha para ele. Elas tropeçaram nesta imagem, enredaram-se no seu corpo e não mais conseguiram desenvencilhar-se. Algo, diria eu, que acontece quando nasce um poema: uma imagem trava a lógica do raciocínio e, burra e teimosa, não mais sai do caminho, ocupa o rumo traçado pelo raciocínio e faz parar, barra – qual parede física – o conceito, para produzir pensamento em vez de ser o conceito a fazê-lo, tornando-se começo e fim inesperados e exasperantemente insensatos, como estes japoneses que sabem tão bem ler os segredos dos corpos e param a fita de montagem da minha hermenêutica reflexivamente impoética para lhe lembrar que a poética é um impasse reflexivo de que nem frangos nem galinhas, nem críticos nem poetas, sairão vivos.
Teresa Bartolomei
Teresa Bartolomei: Italiana, casou com um português por causa de Alemanha maior, o que a levou ao limite “onde a terra se acaba e o mar começa”. Gostando de limites porque dão forma, procura testá-los nos textos em que a palavra não é meio mas fim, dentro do qual o ruído se acaba e o sentido começa.