Sobre Poesia Completa de Natália Correia, Clara Rocha
Maria S. Mendes
Sobre Poesia Completa de Natália Correia
Percorrer a Poesia Completa de Natália Correia é surpreender e deixar-se surpreender pelo princípio da metamorfose que a governa. Eixo fundamental da obra, ele traduz-se na inquieta movência das formas de expressão poética que se sucedem e interpenetram, na assimilação criadora de tradições diversas, na identificação com matrizes estético-literárias tão díspares como o Barroco, o Romantismo e o Surrealismo, na pluralidade de um rosto que proteicamente se diz em figurações várias, na alternância entre o frívolo e o sério, o riso e as lágrimas, a alegria e a mágoa, e finalmente no modo de reunir os contrários, segundo a lição da “gnose inerente à poesia que nos diz: as coisas só se revelam inteiramente no seu oposto, visto que com ele são unas”[1].
Lembremos os primeiros versos de Ovídio: “De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho/a falar” (Metamorfoses, trad. Paulo Farmhouse Alberto, Lisboa: Livros Cotovia, 2007). Sejam aqui os corpos os poemas, e tentemos dar uma ideia da prodigiosa força de transmutação que neles se joga.
Se o elevado número de poemas “biográficos” (títulos como “Biografia”, “Biografia encomendada pela insónia”, “Ultrabiográfico”, “Árvore genealógica”, ou mesmo “O diário de Cynthia” e “No meu aniversário” confirmam e reforçam o pendor pessoal desta poesia) vai cimentando aos poucos a figura dum eu, esse eu encontra precisamente a sua inteireza na pluralidade, na diversidade, na metamorfose. Disse-o Dórdio Guimarães no retrato que traçou de Natália e a que chamou “Reflexão”:
(...) Só o desespero da condição de a vida ser tão pouca para abranger tanta terra, gentes, acontecimentos. Assim, deambulatória no estatismo. Assim, versátil na andança. Assim, vária, flexível e gerúndio. (...) Hipérbole, espiral, esfinge. O teu dom é seres mutante, tens o apetite das metamorfoses[2].
E di-lo com igual veemência a poesia de Natália Correia, nas “antífrases” que a autora de si mesma assinou (como escreve no poema “Pórtico”, de O Dilúvio e a Pomba), nas ficções em que se projectou, desde a “Feiticeira Cotovia” à “Sibila/ com bico de rouxinol” de Comunicação (1959), desde a Cynthia de O Vinho e a Lira (1966) até à Paloma do romance homónimo em A Mosca Iluminada (1972), e na distância que vai da mulher-menina à mulher fatal, duas faces do mesmo ser plasmadas nos seus versos (e pólos de um imaginário surrealista que Natália Correia não enjeitou). Assim tematizada, a pluralidade do eu exprime-se quase sempre em pujança, salvo num dos Sonetos Românticos onde a nota de melancolia se insinua no exercício da autognose:
Vem do mais recôndito concerto
Uma íntima voz que me confunde.
Alguém em mim invade-me e desperto
Noutro ser que subtil em mim se infunde.
E sou eu todavia longe e perto
Buscando a luz que a unidade funde
De contrários perfis. Só o deserto
De em nenhum rosto achar-me me responde.
À sombra erma de uma razão longínqua
Narro-me e não me encontro. Que hora ubíqua
De mim brusca me rapta e em mim estou?
Una e fendida par a par me vergo
À saudade de mim e nada enxergo
Salvo o diverso ser de ser quem sou.[3]
A modulação sempre diversa desta voz poética passa também por uma capacidade de conformação e de apropriação de matrizes estéticas que, longe de se excluírem, mutuamente se fecundam. É assim que a tradição barroca se renova na poesia de Natália Correia, ao nível da forma que se dilata em hipérboles, metáforas e períodos superadjectivados e torrenciais, e ao nível do conceito que se refina em agudezas, se entretém em jogos (veja-se, por exemplo, o poema “Os numes nos nomes”, paradigma dessa engenhosa filigrana, em O Dilúvio e a Pomba) ou se desafora na mais violenta sátira. O Surrealismo concorre também nos versos de Natália Correia para a definição de um perfil poético. Em Passaporte (1958), sobretudo, a autora aproxima-se de um certo imaginário surreal, do nonsense, dos jogos verbais que inventariam imagens desconexas, celebra as “Metamorfoses necessárias para a reconquista do mundo” e “A demiurgia do riso”, e chega a mencionar, no poema “Êxodo”, os nomes de Mário Cesariny e de Manuel de Lima.
E quando, em 1990, se diz romântica (“Confia. Eu sou romântica. Não falto”[4]), está mais certa do que nunca. Fiel ao seu génio desbordante, a poesia de Natália encontra nos Sonetos Românticos“o nexo da sofreguidão ôntica do soneto, anseio de frequentação da imortalidade”[5], como a própria autora explica num dos últimos inéditos. Nos Sonetos, a poetisa revisita e incorpora as grandes ideias literárias românticas: a ânsia dum absoluto poético (“Poesia: angústia de querer sempre mais”[6]), a possessão (“Ó cercos/ Do enigma, a criação que me sitia/ Com arredores de absoluto e endereços/ Possessos de entrevista maravilha”[7]), a celebração do “génio da noite”[8], a crença na sua “estrela errante”[9]e a exaltação do “libertário gesto”[10]. Ponto culminante desta obra poética, pela mestria formal e pelo continuumde intensidade que alcançam, os Sonetos Românticos são a última metamorfose duma voz chegada ao termo do canto, “no limiar/ da revelação”[11], mas atenta desde os primeiros versos ao mistério da poesia, a esse “puro relâmpago da minha recôndita disponibilidade para receber a mercê que me é dada em palavras de olhar as coisas de uma outra forma, alinhando-as num ritmo que corre para um ponto onde tudo está abrangido”[12].
O princípio de metamorfose é também evidente na versatilidade das formas convocadas pela autora. Entre elas, predominam as formas populares orais (romances versificados, redondilha), as da lírica medieval (cantigas de amigo, cantigas de risadilha, pastorelas, albas), a sátira, a ode e o soneto. Este último, “que sémen e ovo inclui”[13], é objecto de reflexão metapoética no conjunto intitulado “Ars Aurifera”, que abre os Sonetos Românticos e se detém sobre a completude dessa forma poética fixa cujos “catorze degraus” “são contas que Deus fez”[14]. Sem falar na transmutação do verbo noutra língua, o francês, no qual, à semelhança do seu conterrâneo Vitorino Nemésio, Natália Correia também se aventura numa série de poemas escritos em 1955, é ainda o constante movimento de temas e de tons que salta à vista nesta Poesia Completa. A poesia mais circunstancial alterna com a mais intemporal, irrompendo por vezes a sátira como expressão de uma frivolidade que só a muita cultura consente, ou, nas palavras da autora, como “disparo de fulminantes recusas e subversões contra o olho dos Ciclopes da Ordem Absoluta”[15]. Desde “As alunas das Doroteias” dos inéditos (1947-55) até ao “Cancioneiro Joco-Marcelino” de inéditos mais tardios (este último composto por poemas escritos durante a campanha eleitoral autárquica de 1989), passando pela Epístola aos Iamitas, no rescaldo da Revolução de 1974, e pelas “Cantigas de Risadilha” inspiradas em episódios da vida parlamentar, a poesia satírica de Natália Correia dá-nos momentos de divertimento ou responsabilização tão essenciais à sua índole como as interrogações sobre a poesia (cf., logo em 1955, a “Introdução ao mistério da poesia”, em Poemas), as composições de amor sensual ou místico (veja-se, em especial, “Rebis” como exaltação da fusão dos contrários na relação homem-mulher[16]), a transfiguração simbólica da ilha (e também neste ponto se torna evidente a sintonia com Nemésio), a evocação da mãe (cantada no soneto V de “Mãe Ilha”, nos Sonetos Românticos, como alfa e ómega: “E se o mundo em ti principiava,/ No teu mistério entre astros absortos,/ Suavemente, ó mãe, tudo termina”[17]) ou o paganismo e a celebração da alegria dionisíaca. Do paganismo, diga-se que é um dos mais importantes filões temáticos desta poesia, sobretudo em O Armistício (1985), onde Natália combate a crença no “deus totalitário da verdade única tenazmente administrada pelo fanatismo dos monoteístas”[18], interpreta o ateísmo como “verme que rói o íntimo da crença num único deus”[19], renega o “cristianismo da cruz” como “sombra onde se perdeu o cristianismo da vontade de vida”[20]e, em nome duma ressacralização da vida e da alegria da vida, exalta um politeísmo natural e sem aras:
(...) A altares não prendas aqueles que são deuses
Porque são soltos como gargalhadas
Qual das crisálidas os impulsos presos,
Para voar, rebentam as suas cascas.
Reprova o oráculo os que por crenças fátuas,
Matando o riso, vão do tempo à tumba.
A alegria é divina. As suas asas
Murcham se atadas a aras de renúncia[21].
A Poesia Completa de Natália Correia – que retoma os poemas antes publicados em O Sol das Noites e o Luar nos Dias (sugestivo título expressando, uma vez mais, a fusão poética dos contrários), e onde se reúnem os textos publicados até 1990, intercalados de inéditos segundo a ordem cronológica – é pois o “retrato duma voz”. Voz que se modula nos sons da fúria ou da emoção lírica, do riso ou da mágoa, da saudade ou da vivência, mas que, estreme e livre, resiste, se transforma e transforma.
Clara Rocha, “Sobre Poesia Completade Natália Correia”, O Cachimbo de António Nobre e Outros Ensaios, Lisboa, Dom Quixote, 2003, pp. 257-263.
[1]Natália Correia, Poesia Completa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999, p. 32.
[2]Letras & Letras, nº 26, Porto, 1990, p. 10.
[3]Natália Correia, op. cit., p. 598.
[4]Id., ibid., p. 589.
[5]Ibid., p. 619.
[6]Ibid., p. 575.
[7]Ibid., p. 576.
[8]Ibid., p. 584 ss.
[9]Ibid., p. 594.
[10]Ibid., p. 595.
[11]Ibid., p. 573.
[12]Ibid., p. 30.
[13]Ibid., p. 570.
[14]Ibid., p. 571.
[15]Ibid., p. 30.
[16]Ibid., p. 230.
[17]Ibid., pp. 580-581.
[18]Ibid., p. 503.
[19]Ibid., p. 504.
[20]Ibid., p. 506.
[21]Ibid., p. 512.