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Pedra-de-toque

A segunda tentativa, Miguel Tamen

joana meirim

A segunda tentativa

A paráfrase que Luís de Camões fez do salmo 137 (ou 136), “Super flumina Babylonis”, chamada em português “Sobre os rios” ou “Sôbolos rios”[i] é bem conhecida[ii]. Este epíteto porém é deceptivo. Quando os críticos falam de “bem conhecido” a respeito de um poema querem geralmente dizer “bem te conheço” – o epíteto é uma apóstrofe dirigida em primeiro lugar ao poema. E a apóstrofe insinua que os críticos estão particularmente seguros das ferramentas que usaram para chegar a essa conclusão.

No caso de “Sobre os rios” as ferramentas são de vária ordem, mas comungam normalmente do reflexo de guilda a que se chama história das ideias. Empresa e guilda suscitam-me pouco entusiasmo. Não me referirei por isso à constelação de publicistas a que se chamou “neoplatonismo florentino”, ou emitirei opiniões sobre o salmo 137 (ou 136); tampouco discutirei as duas versões do título do poema; não irei interferir nos continuados desacordos sobre a sua datação; com uma excepção passageira, não tratarei da relativamente intrincada história textual do poema[iii]; e, mais importante, não tirarei conclusões do facto de que o poema, como publicado depois de 1595, tem 365 versos, ou de qualquer modo me darei ao gosto reiterado de expedições numerológicas, refúgio antigo de quem confunde saber contar com saber ler.

Vários comentadores observaram, com razão, que existe uma mudança de tom crucial por volta do verso 201 do poema. A mudança corresponde ao fim da mudança manuscrita de 1578, no Cancioneiro de Cristóvão Borges. Falar de mudanças de tom corresponde frequentemente a falar de entidades impalpáveis. Não aqui: na história de “Sobre os rios” esta mudança de tom significa que, enquanto até ao verso 200 se tende a utilizar como ferramentas metodológicas e descritivas referências genéricas à Bíblia e aos mitos órficos, a partir do verso 200 tende-se normalmente a mudar de caixa de ferramentas e a socorrer-se de artilharia pesada menos vaga como Platão e Santo Agostinho (e mesmo, a acreditar num crítico, o pseudo-Jerónimo). Ambas as caixas de ferramentas se revelam úteis quando se trata de caracterizar as opiniões de Camões quer acerca da sua poesia quer do seu poema. E, mais importante, foram usadas pelo próprio Camões para descrever pelo menos duas doutrinas incompatíveis sobre a poesia.

Nenhuma caracterização de tais doutrinas, por muito superficial que seja, se pode dispensar de sublinhar a relação que existe entre elas e a organização conspicuamente dualista do poema. Mais do que as não obstante extensas referências a Babel e Sião, aquilo que o Salmista deu a Camões foi um dispositivo composicional em que para todo o P existe sempre latente e algures um não-P. As oposições entre céu e terra, memória e reminiscência, e mesmo entre dois tipos de poesia pertencem claramente a este domínio, não, bem entendido, ao salmo, mas à forma que o poema partilha com o salmo. O dispositivo é tão reiteradamente usado que bastam quantidades mínimas de esforço interpretativo para se chegar a uma descrição geral do poema – o que explica não tanto que tenham sido produzidas tantas exegeses do poema como que quase todas se pareçam tanto entre si.

Ao termo técnico para tal dispositivo composicional podemos chamar “comparação”. O poema começa por entre a exibição de uma notável profusão de fluidos aquosos. Pouco depois, contudo, é imposta alguma ordem:

 

Sobre os rios que vão

por Babilónia m’ achei,

onde sentado chorei

as lembranças de Sião

e quanto nela passei.

Ali o rio corrente

de meus olhos foi manado,

e tudo bem comparado:

Babilónia ao mal presente,

Sião ao tempo passado. (1-10)

 

Os primeiros dez versos do poema contêm uma curta, embora surpreendente, narrativa, que poderia ser parafraseada do seguinte modo: estou sentado perto de Babilónia, choro as minhas recordações de Sião, saltam-me as lágrimas dos olhos, e tudo vai parar ao seu lugar, ou seja, é “tudo bem comparado” (8). O que é surpreendente é o facto de o poeta choroso encontrar em si forças para se dedicar a tarefas reconhecidamente pouco sentimentais como a elaboração de comparações. O resultado desta primeira operação é a grande descrição meta-interpretativa do poema, em que comentador algum deixou de reparar: “Babilónia ao mal presente, / Sião ao tempo passado” (9-10). Se quiséssemos assim resumir esta pequena história, esquecendo por um momento os seus prodígios hidráulicos, chegaríamos a uma coisa tão simples (e surpreendente) como: o poeta senta-se perto de Babilónia após o que explica o que tudo isso quer dizer. A tal actividade se chama por vezes alegorese. Pondo de parte quezílias terminológicas, é preciso observar que a alegorese é um dispositivo de poupança de energias muito importante, visto que aos leitores, a partir de agora, não serão pedidos esforços a propósito do significado de qualquer passagem particular no poema.

A única coisa que têm de fazer é ligar todos os termos problemáticos quer a Babel quer a Sião e reafirmar, com maior ou menor engenho, a estrutura dualista tão claramente indicada no princípio do poema.

Posso agora voltar às teorias incompatíveis acerca da poesia a que me referi acima. A primeira teoria é exposta no contexto de uma longuíssima apóstrofe à música (a ser entendida como mousikē, ou arte das Musas), que se estende entre os versos 58 e 115. A apóstrofe é uma despedida da música, uma característica importante a que terei de voltar à frente em mais pormenor. Três versos depois de começar a apóstrofe a “música amada” (58) transforma-se em “frauta minha” (61), e é-nos oferecida uma descrição dos efeitos do tocar da flauta, a actividade a que ali se está deliberadamente a renunciar:

 

Frauta minha que, tangendo,

os montes fazíeis vir

para onde estáveis, correndo;

e as águas, que iam decendo,

tornavam logo a subir.

Jamais vos não ouvirão

os tigres, que se amansavam;

e as ovelhas, que pastavam,

das ervas se fartarão

que, por vos ouvir, deixavam. (61-70)

 

Segundo esta descrição, a actividade musical que se realiza com a ajuda de uma flauta tem efeitos que contradizem ao mesmo tempo as leis da física (as montanhas movem-se, os rios mudam de curso) e algumas suposições largamente partilhadas no que diz respeito a disposições de animais (os tigres amansam-se, e as ovelhas esquecem-se de pastar e abandonam tudo). Poder-se-ia, claro, recorrer à nossa caixa de ferramentas órfica, mas tal não é sequer requerido pelo meu argumento. Basta observar que tocar flauta e por isso a poesia lato sensu faz acontecer coisas — o tipo de coisas que nenhuma suposição sobre o que pode plausivelmente acontecer contempla.

A segunda doutrina aparece muito depois no poema. Em vez de uma flauta temos agora uma “lira santa e capaz / doutra mais alta invenção” (267-8). E em vez de descrições de efeitos, temos claras prescrições poéticas: “cale-se esta confusão, / cante-se a visão da paz” (269-70). Bem entendido, as prescrições contêm descrições implícitas da primeira doutrina. Ovelhas que não pastam e montanhas que se movem não são visões de paz, e num sentido importante tigres ao lado de ovelhas são descrições confusas, ou descrições de uma alteração na ordem natural das coisas. Consequentemente, para a teoria número dois nada de propriamente físico se deve seguir da poesia. É neste sentido que, como Auden ansiosamente observou, “a poesia  não faz acontecer coisa alguma”. 

Até aqui não há grandes problemas. Mesmo se do fundo dos nossos corações fisicalistas todos mais ou menos estamos de acordo que a segunda doutrina é verdadeira (os profissionais desta nossa profissão transportam em si as cicatrizes das suas tentativas anteriores de brandir sonetos diante de tigres pouco acomodatícios), a fábula podia proceder do seguinte modo: enquanto nos meus dias felizes em Jerusalém me podia dar ao luxo de cometer paradoxos, um poeta in dürftiger Zeit tem outros deveres. Babel, por assim dizer, requer uma ordem poética, enquanto Sião pode tolerar pelo menos uma certa quantidade de disparates físicos. É pois esta uma fábula acerca da razão por que uma mudança de doutrina se tornou necessária. Nunca se deve subestimar os encantos do quiasmo (a desordenada Babel que requer uma ordem poética vs. a ordenada Sião que pode passar sem tal ordem), mas é bom de ver que estamos apenas a reiterar o esquema interpretativo exposto no início do poema. Nenhuma interpretação que sucumba a tal repositório de contrastes estonteante será alguma vez a nossa, pela simples razão de que Camões já a antecipara.

Uma questão diferente, no entanto, é a de saber ou descrever como é que esta mudança momentosa foi levada a cabo. Aqui de novo o poema dá-nos um termo especial que temos de examinar mais de perto. Quase imediatamente após a descrição da segunda doutrina, Camões introduz uma segunda apóstrofe, desta vez dirigida a pastores e reis:

 

Ouça-me o pastor e o rei,

retumbe este acento santo,

mova-se no mundo espanto;

que, do que já mal cantei,

a palinódia já canto. (271-5)

 

Esta passagem depende de uma distinção crucial entre o uso de dois tempos verbais: o perfeito de “cantei” e o presente de “canto”[iv]. “Palinódia” é por isso uma descrição daquilo que estou agora a fazer, que por sua vez requer uma descrição (e uma avaliação negativa) daquilo que eu fiz no passado. O poema parece ser nos seus próprios termos uma palinódia, o que parece querer dizer que se trata de um acto de expiação em relação a poemas anteriores.

Mesmo se o termo concreto é introduzido apenas aqui, existem várias e bem conhecidas imagens na primeira parte do poema que parecem denotar este tipo de alteração. Nos versos 54-55, Camões sugere que “nos salgueiros pendurei / os órgãos com que cantava”. Como vimos, tais órgãos são essencialmente uma flauta. A passagem é desenvolvida nos versos 251-5 como

 

Fique logo pendurada

a frauta com que tangi,

ó Hierusalém sagrada,

e tome a lira dourada

para só cantar de ti! (251-5)

 

Poder-nos-íamos ver tentados a assimilar as duas passagens, visto que apesar de tudo parecem exemplificar o mesmo emblema, no qual o fim de um certo tipo de poesia é assimilado à deposição ritual das ferramentas poéticas. Foi isto que afinal o Salmista disse sobre deposição no segundo versículo do salmo 137[v].

Nesta segunda passagem, todavia, a estrutura temporal é completamente diferente: o tomar da lira é descrito como um acontecimento futuro e a deposição da flauta é pelo contrário um acontecimento presente. Visto que, pelo menos de acordo com a doutrina número dois, nada se segue de um poema, seria completamente inexacto descrever este acontecimento presente como uma espécie de performativo. Não há para nós maneira de saber com certeza se qualquer acto teve aqui lugar. Não é esta a ocasião para dar largas à minha hostilidade em relação às glosas literárias das teorias dos actos de fala. Permanece no entanto o facto de que a descrição do tomar da lira só pode ser feita como que em termos-de-flauta e é por isso que a linguagem da palinódia é inevitavelmente a linguagem de que nos estamos a tentar libertar. A afirmação feita então na passagem anterior é assim prima facie falsa: nada foi pendurado em sítio algum, excepto talvez a doutrina número dois. Um efeito inverso, e particularmente intrigante, é entretanto o da escolha do verbo para a descrição do tocar da flauta. O verbo “tanger”, literalmente “tocar”, refere-se sobretudo a instrumentos de cordas. Só muito metaforicamente é que se tange uma flauta. A menos que, claro, a flauta seja já uma lira[vi]. Se assim for, o tomar da lira em termos-de-flauta é o tipo de fábula que pode ser apenas construída em termos-de-lira. De novo nada está aqui a ser pendurado a não ser talvez a doutrina número um.

A alguns leitores estas questões podem parecer-se com uma versão menos talentosa da espécie de engenharia hidráulica que o poema tão agilmente exibe noutros lugares. E no entanto apontam para um problema que espero que até os menos benevolentes possam perceber: será este o tipo de poema que uma pessoa escreveria em Jerusalém (de acordo com as doutrinas um e dois) ou, pelo contrário, tratar-se-á de mais um exemplo daquilo a que Camões chama, no verso 45, “confusão de Babel”? Por outras palavras, deu a palinódia resultado, teve o poema êxito nos seus próprios termos, terá a segunda tentativa de Camões valido a pena? Posto deste modo, evidentemente, não há uma resposta clara. Apesar de acreditar que existe uma resposta, proponho que deixemos por agora a pergunta irrespondida e tentemos em vez disso modificar a descrição do nosso problema.

Mudar uma descrição significa, bem entendido, mudar novamente de caixa de ferramentas. A segunda parte do poema, imediatamente após o verso 200, começa de um modo porventura desajeitado, com uma objecção teológica, seguida de uma resposta, para que não tínhamos sido preparados antes em qualquer lugar.

 

Mas ó tu, terra de Glória,

se eu nunca vi tua essência,

como me lembras na ausência?

Não me lembras na memória,

senão na reminiscência. (201-5)

 

Todos os estudiosos de teologia reconhecerão aqui a resposta a uma dificuldade cuja forma cristã fora primeiro tornada famosa por Agostinho: “Se te encontrar fora da minha memória, estou esquecido de ti. E, se não estou lembrado de ti, como é que te encontrarei?” (Conf., 10:17, §26)[vii]. Dada a lapsariedade dos seres humanos e a passagem do tempo, como podemos esperar lembrar-nos de um lugar em que nunca estivemos ou de uma entidade que nunca percebemos com os nossos sentidos? A resposta de Agostinho consiste, claro, em sugerir que apesar de a memória ser o poder de recordar factos empíricos, isto é, de justificar descrições de factos a que assisti, a memória só por si não é suficiente. É por isso necessário “transire memoriam”, ir “além da memória” (idem) até um domínio em que recordamos coisas de cujo esquecimento já nem sequer nos lembramos (idem, 10:20, §29)[viii]. Para tranquilidade própria e alheia não me deterei mais na analogia (bem como nas diferenças substanciais) entre o mundo platónico das ideias e a Jerusalém celeste de Agostinho. O que me interessa é o que se segue no poema:

 

Que a alma é tábua rasa

que, com a escrita doutrina

celeste, tanto imagina

que voa da própria casa,

e sobe à pátria divina. (201-206)

 

O que se segue é uma doutrina da alma, agora informalmente aristotélica, em que a alma é descrita como uma tabula rasa[ix]. O movimento de ascensão em direcção a Jerusalém é por isso predicado numa característica da alma. Apesar de não ser muito difícil, esta explicação da ascensão tem algumas particularidades momentosas: a “escrita doutrina / celeste” faz detonar a imaginação, a qual propulsiona a alma para cima em direcção a casa. Trata-se além disso da resposta a uma questão que tínhamos aparentemente deixado para trás, a saber, a questão de saber como a palinódia é de todo possível. A palinódia é possível, parece dizer-nos o poema, porque é sempre possível escrever na alma. O seu carácter de tabula rasa, poder-se-ia dizer, é aquilo que lhe permite segundas tentativas progressivamente mais perfeitas. Para o poeta, isto quer dizer que pode plausivelmente desejar com esperança de sucesso, como Camões faz nos versos 264-5, que “risque-se quanto já fiz / do grão livro dos viventes”. Nenhuma aterragem de emergência, ou soneto menos feliz, é definitiva e, mais importante, nenhum traço das nossas desventuras anteriores permanecerá após uma ascensão bem-sucedida.

Mas será mesmo assim? O pormenor do texto é de novo importante para esta precisão. E o que é aí dito explicitamente é que o voo deste modo descrito tem lugar através, e no interior, da imaginação. Trata-se de um desvio crucial em relação às distinções de Platão, Aristóteles e Agostinho, que no entanto Camões parece estar a citar. A fábula é agora substancialmente diferente da dos seus precursores filosóficos: uma alma velha e vazia, presa de certas imagens suscitadas pela escrita doutrina, voa para longe de casa e acaba por imaginar o céu. É isto que diz, mesmo no fim do poema, a apóstrofe final ao “divino aposento” (356):

 

Ó tu, divino aposento,

minha pátria singular!

Se só com te imaginar

tanto sobe o entendimento,

que fará se em ti se achar? (356-60)

 

Que poderá de facto fazer o entendimento? Não muito, mas seguramente não poesia. A passagem depende essencialmente de dois verbos, que denotam duas acções opostas que afectam o entendimento (também talvez no sentido de “intelecto”): “imaginar” e “achar-se”. Infelizmente, para o entendimento chegar a casa (ou, como Camões diz um pouco antes, usando a sua caixa de ferramentas platónica, “quanto ao homem for possível, / passar logo o entendimento / para o mundo inteligível”, 343-5), a pessoa dotada de entendimento tem de estar morta, mesmo que a morte seja, como é, descrita no último verso do poema como descanso eterno (365). E, claro, enquanto se está a escrever poemas, impelidos quer por liras quer por flautas, ainda se está incontroversamente vivo. É por isso que os poemas podem quando muito e no melhor dos casos ser actos da imaginação. Descrever montanhas em movimento ou pormenores celestes são sempre actos da imaginação. Temos então de nos despedir da nossa laboriosa distinção entre a doutrina número um e a doutrina número dois.

Existe assim algo que permanece essencialmente inalterado, independentemente do facto de alguém, por exemplo um poeta, se encontrar empiricamente localizado em Babel ou em Jerusalém. Nenhuma quantidade de lirismo nos dará repouso eterno – o que é afinal apenas um modo de dizer que toda a poesia edificante que retirámos da nossa caixa de ferramentas agostiniana é indistinguível de toda a poesia não edificante que sai da nossa difusa caixa órfica. O poema, por isso, dá uma resposta negativa, ainda que contraditória, à pergunta que deixámos atrás suspensa: todos os poemas são linguagem de Babel, e nenhuma quantidade de poesia conseguirá alguma vez clarificar a poesia, muito menos redimir-nos da poesia (compare-se com um argumento familiar a filósofos contemporâneos segundo o qual nenhuma tentativa de purificar a linguagem conseguirá alguma vez redimir-nos da linguagem). A única diferença conceptualmente relevante seria no máximo a diferença entre, por um lado, Babel e Jerusalém e, por outro, a Jerusalém celeste. A descrição dessa diferença, poética ou teológica, pelo contrário, é sempre uma soma de disparates babélicos, por muito bem-intencionados que sejam. Não por acaso no seu comentário ao salmo 137, Agostinho observa que neste sentido toda a linguagem humana nos chega como “… uma língua estranha, uma língua bárbara, que aprendemos no nosso cativeiro” (Enarrationes in Psalmos, 136 [137], §9).

Tudo isto parece dar um significado completamente diferente a “palinódia” e mesmo a “segunda tentativa”. Também nos obriga a um entendimento muito mais complexo de “entendimento”. É relativamente fácil perceber a razão por que “palinódia” significa agora uma coisa completamente diferente de expiação. De facto, se a poesia não pode trazer qualquer redenção, a expiação é no melhor dos casos a expressão de um desejo, e a expiação através da linguagem acaba sempre por produzir mais daquela poesia de que nos teríamos querido anteriormente desfazer. Se a palinódia, por isso, é sempre uma descrição geral da autoperpetuação da poesia, então da poesia não pode sob aquela descrição dizer-se que consiga atingir qualquer espécie de visão cognitiva, nem do poeta dizer-se que entenda de facto qualquer coisa. “… [A]quilo que mais val”, escrevera já Camões no princípio do poema, “… então se entende milhor / quando mais perdido for” (32-4). Trata-se porventura de um bom conselho para poetas, mas também de uma melhor, se bem que ainda mais sardónica, observação acerca do modo como as nossas descrições da poesia, por muito ditirâmbicas que sejam, estão destinadas a contradizer não apenas o austero veredicto de Agostinho acerca da linguagem como o ainda mais austero veredicto deste poema acerca da poesia.

Miguel Tamen, “A segunda tentativa”, Artigos Portugueses. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.

 

[i] Uso o texto como publicado por Maria de Lourdes Saraiva segundo a edição de 1595 in Luís de Camões, Lírica Completa. Lisboa: INCM, 1980, 1:273-88.

[ii] Para uma amostra da literatura disponível veja-se Manuel Augusto Rodrigues. “‘Sobolos rios que vão’ à luz da exegese bíblica moderna”. Arquivos do Centro Cultural Português (16). Paris: Gulbenkian, 1981, 387-425.

[iii] A melhor sinopse destes três tópicos pode encontrar-se em Arthur Lee-Francis Askins, ed. The Cancioneiro de Cristóvão Borges. Braga: Barbosa Xavier, 1979, 207-27.

[iv] Omito deliberadamente uma complicação muito importante, visto que “canto” será usado muito ambiguamente no verso 335 em “cabeça do Canto”, que na sua relação com “Pedra” (334) também se tornará “pedra do canto”. A poesia, neste sentido, torna-se a “pedra” das Escrituras, mencionada e.g. nos Salmos (118:22), em Isaías (28: 16: “Vou colocar em Sião uma pedra que vos ponha à prova. Será uma pedra preciosa, angular, bem firme. Aquele que confiar nela não tropeçará”) e nos Evangelhos sinópticos (Mt 21:42, Mc 12:10, Lc20:17).

[v] O Salmista, na tradução da Vulgata de “τἀ 'óργανα” a partir do grego dos Setenta (“in salicibus in medio eius suspendimus organa nostra”) fala de “organa”, que pode querer dizer, em latim e em grego, “instrumentos”, “máquinas ou instrumentos militares”, e “tubos” (como num instrumento musical) (cf. e.g. Lewis & Short, s. v. orgănum; Liddell & Scott, s. v. ὄργανον). Na tradução latina do hebraico, que Camões claro não seguiu, temos “citharas” (ac. pl.), “cítaras”, “guitarras” ou “lutes” (Lewis & Short, s.v. cĭthăra), termo que traduz o hebraico “kinnōrōth”(fem. pl.) derivado de “kinnowr”, “harpa” ou “lira”. Pode-se facilmente imaginar o tradutor grego, inseguro quanto ao significado técnico específico de “kinnōrōth”, a usar em grego o termo geral para instrumentos musicais que infelizmente também significava instrumentos de sopro ou tubos e instrumentos militares (e que depois foi fielmente traduzido para latim). A harpa hebraica transformou-se assim em vários objectos, entre os quais uma flauta.

[vi] De facto a flauta já tinha sido uma lira, visto que a palavra para flauta teria sido erroneamente tomada por sinónimo da palavra para lira (ver a nota anterior). Talvez neste sentido seja o poema de Camões uma correcção poética daquele erro e assim um caso clássico de justiça poética em acção.

[vii] “Si praeter memoriam meam te inuenio, immemor tui sum. Et quomodo iam inueniam te, si memor non sum tui?” Segue-se deste texto a tradução de Arnaldo Espírito Santo et al. Confissões. Lisboa: INCM,2000.

[viii] “[procuro uma vida feliz] ... quer nunca a tenha conhecido, quer dela me tenha esquecido, de tal maneira que nem sequer me lembro de me ter esquecido [siue quam sic oblitus fuerim, ut me nec obtilum esse meminerim]” (Conf., 10:20, §29).

[ix] De Anima, 429b24-430a2, famosamente traduzida por São Tomás, Summa Theologiae, I.79.2. Uma metáfora relacionada, também famosa, em Platão, Teet., 191c-e