José Blanc de Portugal sobre um soneto de Jorge de Sena
joana meirim
José Blanc de Portugal sobre um soneto de Jorge de Sena
Exemplo primeiro: um soneto de Jorge de Sena
Passemos, pois, a um exemplo de interpretação. Tomemos o seguinte soneto de Jorge de Sena:
Afirmo e esqueço a qual serenidade
em mim persiste, como a guerra breve
ao longo de anos que nenhuma neve
abrandará na terra. E tanta idade
é mera circunstância de igualdade.
Infeliz neve que a si própria deve
o esforço de pousar, de não ser leve
um tempo antes do gelo. E se alguém há-de
vir corromper o Sol da Primavera,
que esqueça logo o projectar da Esfera
– e, só depois, a Sombra essencial.
Da corrupção como estro e como guerra,
a brevidade alastrará na terra.
Afirmo e esqueço. Afirmo e esqueço a qual...
Este soneto faz parte duma série de seis, de que se publicaram apenas cinco[1]. [...]
Passemos imediatamente à interpretação. Como poremos em lugar subsidiário (instantaneamente) o ritmo, escrevamos cada elemento em prosa:
1. Afirmo e esqueço a qual serenidade em mim persiste, como a guerra breve ao longo de anos que nenhuma neve abrandará na terra.
Não é de forma alguma baixeza mental conceder ao leitor que o que o derrota nesta frase é apenas o binómio “a qual.”
Leia-se por exemplo:
“Afirmo e esqueço qual a serenidade [que] em mim persiste, etc.” e tudo parecerá claro ao leitor. Não parecerá? Senão, vejamos. O Autor afirma e esquece. Afirma e esquece – esquece – não em absoluto mas porque sabe que, além do que afirma, há muito mais a dizer e até a esquecer. A vírgula depois de:
“Afirmo e esqueço qual a serenidade [que] em mim persiste,” – indica que a “oração” que se segue (repare-se no sentido de oração) :
“como a guerra breve ao longo de anos
que nenhuma neve abrandará na terra.”
circunstancia a acção da oração anterior.
O Autor afirma para logo esquecer; afirma para explicar e esquece porque explicará melhor a serenidade que nele persiste (sem serenidade, em qualquer grau, não há expressão possível dentro dos limites que sabemos ser possível afirmar isto) e fá-lo como a guerra (que explica, desvela e logo cede lugar a outra interpretação) breve (não porque seja breve em si, logo veremos que dura anos, mas porque tudo é breve desde que tenha de ceder o lugar a outra interpretação). Essa guerra “nenhuma neve a abrandará na terra”.
A neve “abranda a guerra na terra?” A “guerra”, no geológico, é sem dúvida o processo catagenético dos ciclos megarítmicos já em definição pelos geólogos, ao menos para a litologia e para a orogenia. Nesses processos a erosão glaciar é a que produz o desgaste de arestas mais vivas, embora deixe, como se sabe, superfícies riscadas e calhaus erráticos. No político esta mineralização intervém, por um lado, como elemento de comparação e ligação entre os dois conjuntos de ciências fundamentais (a neve: água mineral, cristalizada), espaço anisótropo, etc., é evocadora de um ciclo – o ciclo da água nos seus três estados principais – e, portanto, ciclo – de ritmo variável é certo, mas de certo modo evocativo de uma vivência desde nebulosa – estado de vapor – à para-eternidade da cristalização – estado sólido, passando pelo estado líquido adaptado ao ambiente – os “líquidos não têm forma própria, tomam a forma dos recipientes que os contêm”, como dizem os livros elementares de física para meninos. Por outro lado, ainda abstraindo o símbolo de pureza – brancura – e o símbolo de eterno descanso – a frialdade, o sudário, a morte – pelo que se deve ter compreendido por preliminares necessários a toda a interpretação, vemos que essa neve – elemento do conjunto geológico – cairia sobre a terra – aqui o continente representa o conteúdo (pelo menos fundamentalmente), portanto, leia-se sobre a humanidade – plano político –, assentando sobre o conjunto das proporções dinâmicas e irracionais (no sentido matemático) que dominam o mundo biológico, um espaço cristalínico em que, como se sabe pela lei de Haüy, as razões irracionais são impossíveis (a última incompatibilidade encontra-se na teoria da divisão e preenchimento regular dos espaços, como se pode ver nas teorias sobre grupos de simetria). Quer pois dizer que na guerra de que fala o Poeta não será aparente (pois necessária sempre será) a relação macro-ritmo para micro-ritmo ou picno-ritmo (como prefiro chamar-lhe) ou até que aparentemente se dará uma inversão não real que fará supor que o político é o mega-rítmico (ideia de longa duração – indeterminada – da guerra).
2. E tanta idade é mera circunstância de igualdade.
Quase que seríamos tentados a calar-nos perante o que julgamos evidentíssimo após tudo o que está escrito. Tudo é mera circunstância de igualdade ou tudo é identificável instantaneamente. Basta dizer que idade não é aqui sinónimo de velhice ou mesmo de conjunto de acontecimentos ou época, mas o conjunto insomável de cada elemento é uma idade.
A “circunstancial” neve, elemento decorativo mas não intimamente desnecessário na composição poemática sujeita a esta brevíssima análise (como o deve ser em toda a poesia não redundante), esclarece-se no período seguinte:
3. Infeliz neve que em si própria deve o esforço de pousar, de não ser leve um tempo antes do gelo.
Precisamente a qualificação de infeliz dada à neve introduz um princípio de classificação valorativa que a teoria interpretativa exposta compreende (em rudes linhas o plano geológico seria sempre inferior em medida ao político, embora o não seja em essência, pois se disse que ambos os conjuntos têm a mesma medida. Todavia, esta essência é abstracto-matemática e, portanto, mais metodológica do que primordial). Qualificar a neve de infeliz seria um disparate se não existisse no plano do biológico ou político um ponto equivalente que pela sua vivência é sensível. Compreendendo-se o paralelismo analógico ou mágico, é justo concederem-se epítetos particulares do picno-rítmico aos elementos do mega-rítmico.
A neve a si própria deve o esforço de pousar, que é uma essência já definida no último parêntesis, o seu pensamento-material. Só pelas analogias interpretativas que a teoria apresenta se compreende esta recordação da neve que a faz penar: “não ser leve um tempo antes do gelo.” Vapor que foi água líquida, apenas a um passo do sólido, já não pode ser leve.
4. E se alguém há-de vir corromper o Sol da Primavera, que esqueça logo o projectar da Esfera – e, só depois, a Sombra essencial.
Pede-se, mesmo aos que nunca a virão a compreender, que ao menos abandonem o método diabólico único que inclui o verdadeiro a-rítmico personificado na Esfera. A Esfera é a única imagem geométrica em que não existem verdadeiras razões (no sentido matemático), pois a unidade é a sua comum medida. Conhecer isto não é negar a sua existência. Ao menos da sua Sombra. Mas só esta age sobre nós. Por isso, primeiro que se esqueça qual a sua origem e só depois se esqueça (o que não é de forma alguma ignorar, antes integrar em nós mesmos) a existência deste motor, não primordial, mas consequência da Luz.
5. Da corrupção, como estro e como guerra, a brevidade alastrará na terra.
ou: “Como estro e como guerra a brevidade da corrupção alastrará na terra.”
A corrupção é evidentemente breve – a Esfera, como existência concreta, apenas resulta de uma corrupção verdadeiramente abstracta e conducente à verdadeira ausência de vida que nem sequer existe no que costuma chamar-se o inanimado. Muito especialmente como estro – como inspiração – e como guerra – a verdadeira guerra nem sequer resulta da corrupção, antes do extremo aperfeiçoamento ou do próprio aperfeiçoar – falando mais propriamente.
Logo que se arreigue a ideia da “brevidade da corrupção”, isto é, a ideia do seu finitismo essencial – os católicos sabem que no fim dos tempos a Esfera não mais terá poder sobre a Luz, que aliás não pode esconder, podendo apenas produzir a sombra, ou seja, o zero, a obliteração – acabará a chamada guerra para começar a Guerra.
6. Afirmo e esqueço. Afirmo e esqueço a qual…
O verso final não é apenas uma repetição com a função rítmica do estribilho, embora também a tenha e sirva ainda mais para a introdução do discurso poético a continuar nos subsequentes sonetos. Toda a ideia cíclica ou rítmica que expusemos como fundamental se compreenderá caber nesta simples conclusão. Como a expressão vectorial resume três expressões cartesianas e ainda dá mais qualquer novo sentido directivo, assim a poesia condensa em si tudo.
Não se chegou a definir expressamente que ciência seria a interpretação ou que ciência será a poesia. Poder-nos-íamos escusar, para o leitor merecedor, de que se tivessem escrito estas considerações. E, como poder é ser, apenas diremos por fecho que poesia é interpretação, e interpretação conhecimento. A Poesia fará dos leitores poetas, pois deles fará intérpretes. De cada coisa nasce uma nova coisa até que se consumam os tempos.
José Blanc de Portugal
[Versão revista de um ensaio publicado em Anticrítico – Ensaios. Lisboa: Edições Ática, 1960.]
[1] Referência à publicação em Litoral, n.º 2, Julho de 1944. O título da série é “Génesis” e o soneto comentado é de 2-2-943. A série completa foi publicada em A Coroa da Terra, Porto, 1946.