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Exercício 1

Poemas de agora

Exercício 1

Maria S. Mendes

Exercício 1

  

como um pénalti bem marcado

a vida vai para um lado

e o humano vai pra outro

 

Paulo José Miranda, “Exercício 1”, Exercícios de Humano.Lisboa: Abysmo, 2014.

 

Gosto deste poema porque combina três coisas que não se veem juntas todos os dias: poesia, existencialismo e futebol. Com efeito, é preciso um tipo muito especial de insolência para abordar um dos temas mais nobres da tradição poética dos últimos séculos —o estado de alienação do homem racional face ao mundo em seu redor —através de uma alusão à atividade que, nos círculos da haute culture nacional, representa tudo quanto é populista, ignóbil, rasteiro e no geral oposto à pureza beatífica da poesiaDesse choque vocabular resulta o sorriso que acompanha invariavelmente a leitura desprevenida deste poema, e que poderíamos ser tentados a tomar como o ponto final do exercício hermenêutico, concluindo estarmos perante um “anti-poema”, uma brincadeira pós-moderna que vale pelo humor irónico patente na linguagem utilizada.

No entanto, parece haver um lado sério na brincadeira. Através do símile, este poema singelo não só consegue apresentar de modo sucinto um problema existencial intricado, como também é capaz de sugerir a complexidade dos sentimentos de frustração e rancor inerentes ao homem que vê a vida passar-lhe ao lado. O guarda-redes que se atira na direção errada não sente apenas a mágoa do fracasso e a tristeza pela derrota: ele é efetivamente enganado por outrem. Trata-se de uma ofensa pessoal, e a frustração que ele experiencia tem um lado de afronta moral, um ressentimento voltado para o jogador que lhe passa a perna com uma malícia tão subtil que o coloca na posição tragicómica de ver o seu esforço degenerar em humilhação —atirando-se para o lado oposto ao da bola, quanto mais majestoso e olímpico o voo, maior o ridículo da situação. O humano é, portanto, um ser vexado e ofendido, preso a uma condição inglória em que a “vida” (termo ambíguo, podendo referir-se à vida natural, edénica, eudaimónica, etc.) está fora do seu alcance e quaisquer tentativas de a agarrar resultam apenas numa queda aparatosa. E para quem dirige elea sua revolta, o seu desejo íntimo de vingança e compensação por tão cruel fado? Quem será esse marcador de “pénalties” sem misericórdia, cuja técnica e astúcia o ultrapassam infinitamente? Muito provavelmente, será Deus – o mesmo que, segundo diz o poeta em O Tabaco de Deus, nos “enrolava (…) vagarosamente / para acabarmos entre os seus dedos”[i]

Levando a brincadeira ainda mais a sério, podemos encontrar no poema uma rotura com uma corrente da tradição modernista que tende a considerar o estado de alienação do sujeito enquanto apanágio exclusivo de uma pequena elite de solitários hiper-conscientes. O termo “humano” não discrimina nem exclui – o estado de erro existencial descrito é uma característica essencial e universal, comum tanto aos poetas como às ceifeiras deste mundo, aos Álvaros de Campos e aos “Esteves sem metafísica” que vivem entre tabacarias e futebóis. Neste sentido, o recurso ao conceito demótico do “pénalti” constituiria um esforço adicional no sentido da desaristocratização da velha tensão poética entre o “humano” e a “vida” – uma preocupação que é, de resto, um dos traços característicos da poesia de Paulo José Miranda.

 

António Pereira

[i]    Paulo José Miranda, O Tabaco de Deus. Lisboa: Cotovia, 2002, p. 11.


António Pereira é mestrando no Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Guitarrista nos tempos livres. Interessa-se pelo futebol enquanto case study da condição humana, mas só nos dias em que o Sporting não ganha.