Francisco
Nuno Amado
Francisco
dava de comer aos gatos no quintal
e eles vinham o pior era quando
as gatas escolhiam o quintal para dar à luz
a minha mãe enchia um balde com água
e metia lá os pequeninos até eles deixarem
de miar eles já não miavam e depois
atirava-os para o caixote do lixo
não dês de comer à merda dos gatos
já estou farta de te dizer para
não dares de comer à merda dos gatos
e a gata miava à volta do limoeiro
miava debaixo do tanque
a gata miava até a minha mãe a enxotar
a gata fugia da minha mãe a minha
mãe com a vassoura não voltes
gata de merda nunca mais te quero aqui ver
e a gata fugia mas voltava mais tarde
e eu dava-lhe de comer e quando
a minha mãe me apanhava batia-me
estou farta de te dizer
para não dares de comer à merda dos gatos
José Pedro Moreira, “Francisco”, Gatos no Quintal. Lisboa: Enfermaria 6, 2018. Aqui publicado com autorização do autor.
Gosto deste poema porque sei que o autor gosta de gatos. Não consigo ler este poema, apesar do título, “Francisco”, sem imaginar o autor (a quem eu chamo Zé) a escrevê-lo. Não sei se este Francisco existiu, nem como se chamava. Não sei se tudo o que o poema conta foi completamente inventado. Em qualquer dos casos, mesmo tratando-se de memórias próprias ou em segunda mão, o que sinto sempre que o leio é que é um exercício de imaginação admirável para uma pessoa que gosta de gatos.
Com “Francisco”, o Zé põe-se no lugar de alguém que convive com violência repetida sobre animais de que gosta, de alguém que não pode fazer grande coisa para os proteger e que também é indefeso. Este é um lugar bastante mais penoso de ocupar, mesmo imaginariamente, do que o de um herói forte e dominador. A única sugestão de heroísmo no poema encontra-se no seu tom sóbrio e paciente. Há violência verbal com a repetição dos “gatos de merda” ou da “merda dos gatos”, mas as descrições de actos violentos são praticamente enumerações neutras ou imparciais de factos, são de uma simplicidade retórica invulgar. No meio dos refrães sobre “não dar de comer à merda dos gatos”, a maneira natural como Francisco nos diz que continuava a fazê-lo apesar de a mãe lhe bater faz dele o herói possível – talvez um herói simples, mas que tem toda a simpatia do seu autor.
E também a minha. E isso surpreende-me. Eu sei que as pessoas que dão de comer aos gatinhos (ou aos pombinhos, ou a cães vadios) costumam irritar-me, mas não consigo deixar de simpatizar com o Francisco. O poema consegue pôr-me no lugar dele porque não me pede que tenha pena dele nem dos gatos, não tenta convencer-me a ser bonzinho para nenhum animal. Em vez disso, o poema dá-me por herói uma pessoa que, na situação de não poder exercer livremente os seus gostos, ainda assim os afirma e lida com as consequências disso. Uma pessoa corajosa e que sabe do que gosta, com quem eu, enquanto leitor, gosto de me identificar.
Acontece ainda que “Francisco” é o único poema sobre gatos num quintal dentro de um livro chamado Gatos no Quintal. Também neste ponto o facto de saber que o Zé gosta de gatos contribuiu para que este poema me surpreendesse. Admito que, ao ler o título do livro, fiquei à espera de um ambiente de paz doméstica, de pessoas felizes na sua casa, com os seus gatos. Afinal, estes gatos estão antes associados (como outros poemas do livro) ao trauma, às ansiedades de uma criança, ao contacto com a morte. O poema mostra-me que o Zé, como boa pessoa e bom poeta, foi capaz de percorrer (nos dois sentidos) a distância que vai dos gatos no quintal do Francisco aos gatos que tem hoje em casa, e que eu espero que estejam bons.
Sebastião Belfort Cerqueira
Sebastião Belfort Cerqueira. Desempregado. Lê e escreve alguma poesia. Gosta de rimas.