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O cinema da noite

Poemas de agora

O cinema da noite

Maria S. Mendes

 

O CINEMA DA NOITE   

 

Alguém vem; escuta.

O homem com o seu labirinto portátil chegou

e carrega no interruptor do poema: – a sala e a mesa amadas

a biblioteca do fogo, a gravura submersa, os mundos

abismam-se no mundo que a hélice da vertigem fende

rasga até ao coração irrespirável da terra: Todas as coisas

estremecem na luz da lâmpada : Ilumina-se

uma gigante vermelha em face de uma anã branca.

 

E tudo entra na noite venenosa do fim.

 

Ele: tu, o migrante levas até ao fim essa noite

levas até à ponta extrema, ao limite do seu fio

esta noite final. É aí que a manhã então desponta.

E é isso o trabalho do dia: é que é feito de noite.

Máquinas enlouquecidas folheiam a deslembrança

das vagas neste mar que cegou: as paredes do

labirinto de labirintos ruindo por música

fazem o deserto gelado a toda a volta.

 

Cobrem para sempre a porta de fogo com a pedra

que vibra insone os relâmpagos, as ondas eléctricas

que nascendo do último livro acometem

açoitam e atiram um contra o outro os corpos extintos

dos amantes para sempre perdidos um do outro.

Eram chamas incorruptíveis; são agora papéis que o fogo

amarrotou, recorta e enrola, fluxos que calcinam

uma floresta ultramarina, ardida e petrificada – em cinza

 

as letras de uma palavra que já uma árvore fora.

 

Então o último dia nasce como um dilúvio que subisse: a flor

radioactiva dos seus lábios envenenados e venenosos

é o sol exasperado que contamina todo o esplendor, toda

a glória do vivo sobre esta terra que se despede.

– mas o que é uma terra que se despede? Onde? Como?

– Imagina o corpo do amor como uma praia alta

a claridade alta : o vento alto - aquela intensa viração

que é o ter-se suspendido o tempo sobre o tempo

 

irrepetível: a inacabável perfeição adolescente.

 

Em frente dessa praia alta o que vês então? – O mar altíssimo – 

do início o futuro repetido: a escultura de uma única onda:

esta última vaga para sempre repetindo aquela primeira

em que o mundo ondulou o selvagem nascimento da terra.

Só já depois da despedida podes ter esquecido essa

vertigem que interrompeu e interrompe a passagem

a mudança das paisagens que a conspiração do espírito

vai folheando e tenebrosamente esquece.

Tens de ser tu:

 

Ouve, vê, recorda: Há as dunas mudando e das aves

as longas migrações sobre o céu do teu rosto:

milhões de grãos luminosos, de gotas, de sílabas

de luz: isso é uma constelação de pássaros que são nuvens.

Finita e imortal, tu sabes: é a imperfeita perfeição dos corpos

a matéria imemorial que inventou a música ou o amor.

Paga o preço ao espírito, inventa um deus se te perdeste

no mercado e chegaste atrasado ao encontro,

 

mas não esqueças longa e leve a dança da luz nos corpos

graves. Só eles caindo conhecem a queda que voa. Não esqueças

esses corpos músicos; essas derradeiras luzes que a dança desenha

na luz do fim. E quando a sombra canta e se erguem as dunas

em frente do mar e o mar em frente das cidades calcinadas

não as esqueças: são as sombras da música; são elas

que escrevem e movem as vozes, o corpo de água desta terra

última. Desta terra imperdoável e que não pede perdão.

 

Paga o preço que tiveres de pagar; paga os juros da dor

que te emprestaram para a habitares. Mas não esqueças

a pequena glória desse mar que uma vez se abriu

no cimo da haste que sustenta o mundo, ali, diante da sede

que faz cantar. Paga, paga a morte que vem, para que venha

e não se atrase. Mas não esqueças a noite cega do mar

nem o gesto interrompido da mão escrevendo

na respiração da terra a manhã do último dos homens.

 

 

Manuel Gusmão, “O cinema da noite”, Migrações do Fogo. Lisboa: Caminho, 2004.

 A experiência de estar na noite do cinema concentra-se no segundo antes de se acender o projector. 

Depois o filme começa, e “todas as coisas estremecem na luz da lâmpada”. Então, tal como um verso fixa um gesto, cada plano fixa um momento, é “a escultura de uma única onda”. O filme, que é o mundo em estado puro, evoca o poema, que é a iluminação propriamente dita. E de novo se reencontra a eternidade segundo Rimbaud, esses “milhões de grãos luminosos, de gotas, de sílabas de luz”, nas palavras-imagens que desenham o passeio nocturno. 

Aqui se abandonam as explorações de estados de consciência ou de formas de linguagem. É noutro mapa que se viaja. Nada se vê lá fora, os olhos vêem para dentro. O filme passa no fundo da cabeça.

Finalmente, aparece o “último dos homens”, um título de Murnau de 1924. E entra noutra vida. Começa por ser a personagem de um porteiro de grande hotel que perde o emprego, que fica sem o sobretudo engalanado, o chapéu e a posição, isto é, o privilégio de uma farda imponente num cenário triunfal. Talvez irrisório, mas claríssimo, aparece primeiro como um porteiro palhaço e depois como um anjo medíocre que desenha a figura da sua insuportável humilhação. Mas, que a manhã lhe seja prometida (“na respiração da terra a manhã do último dos homens”) mostra que renasceu. 

A poesia também é o contrário do cinema: não procura as continuidades, mas as soluções de continuidade. 

A “manhã do último dos homens” torna-se uma espécie de porta a que ele assoma, cego pelas imagens. Um corpo vivo. Material, músico, “na luz do fim”. A sua redenção é antes uma redução: os galões, as dragonas e os poderes são arrancados e abandonados. Não finge ser nada, não usa metáforas, nem segundos sentidos. E, quando o filme acaba, pode olhar pela janela, ouvir o bulício lá fora na cidade que acorda. 

Fernando Cabral Martins 


Fernando Cabral Martins é professor de literatura portuguesa na Universidade Nova, publicou alguns livros de ensaio e de ficção.