Ser o homem-aranha não me tenta
Maria S. Mendes
Ser o homem-aranha não me tenta
Ser o homem-aranha não me tenta,
prefiro a vida táctil dos insectos
que ainda na morte se conservam puros,
assim na estante, entre os melhores objectos.
Somos, da criação, os mais intactos
vestígios e sinais, e ainda nos sobra
uma dura memória milenar
no minério dos nossos corpos secos;
o mero escaravelho sabe mais
do mover-se da areia na ampulheta
do que os humanos todos em colégio.
Triste sina porém é não poderes
suportar os contactos animais,
fazer-te comichão, teres alergia,
e quereres escalar os edifícios
com ventosas e outros artifícios
de que me rio, às vezes, quando cais.
Tivesse eu carnes, osso, e pele,
talvez tu me abraçasses, carinhoso,
embora assuste a ideia de servir-te
de entrada fria em singular almoço.
E quem me diz que, belo então que fosse,
conservaria ainda o privilégio
de me sentar no teu joelho, e ver
os exactos mistérios do teu sexo?
António Franco Alexandre, "Ser o homem-aranha não me tenta ", Aracne. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 10-11.
Gosto deste poema porque sim: a referência de abertura ao homem-aranha, com a sua sugestão de uma atmosfera de infância, parece legitimar que este comentário se inicie com uma declaração igualmente infantil. Mas a verdade é que gosto dele por várias razões – umas mais formuláveis, outras menos –, e talvez a primeira delas esteja justamente nesse cenário eventual, e no modo como se preserva ou não a promessa que a eventualidade pressupõe. A primeira palavra do poema é “ser”, e a razão por que gosto muito do primeiro verso decorre precisamente de a forma verbal anunciar uma sequência predicativa que promove a imaginação de um exercício de faz-de-conta (“Ser o homem-aranha”, como em “Eu era o polícia e tu eras o ladrão”), logo negado por um efeito de torção gramatical que vem mudar as regras do jogo (“não me tenta”). E é aqui que o poema ganha todo o interesse, pois ao mesmo tempo que se escusa à reconstituição de qualquer impulso infantil de glorificar um super-herói, vai compondo uma epopeia (veja-se a perícia nas rimas incompletas e na isometria do decassílabo) dos mais pequenos – os insectos, não as crianças –, assente numa modulação do faz-de-conta inicial que indetermina por completo a identidade da instância enunciativa. Eis outro motivo de apreço pelo poema, pois nele é impossível reconstituir a natureza de quem fala (homem/aranha), bem como a de quem é interpelado: entre o “ser” de abertura e o “somos” do quinto verso, parece óbvio que o poliptoto se faz acompanhar de uma metamorfose do próprio sujeito, intensificada quando se refere aos “humanos em colégio” na terceira pessoa, como se estivesse totalmente apartado de tão estranhos seres.
Não estou certa de que este texto possa ser lido isoladamente, já que há bons motivos para o considerar apenas uma secção, ou um canto, do longo poema intitulado Aracne, onde se lê, logo no segundo verso, “fiz-me aranhiço”. Para lá das inevitáveis ressonâncias histórico-mitológicas e simbólicas do título da obra – que nem necessariamente se concretizam aqui –, esta confissão memorialística pode iluminar minimamente o estatuto biológico daquele que não quer ser o homem-aranha. Torna-se assim mais simples interpretar a convocação, em detrimento da do super-homem propriamente dito, da mulher-maravilha, ou de qualquer outra figura da Marvel. Porque entre o homem-aranha – apenas um dos muitos semi-deuses contemporâneos – e o aranhiço, a diferença não é de natureza (ambos duram, ambos se encontram sem rede), mas de escala: o primeiro confinado a uma visão panorâmica própria da “lente-avião” que a distância dos altos edifícios lhe impõe (distant reading), o segundo com o privilégio da “vida táctil” que lhe permite, em proximidade, ser uma espécie de beetle of the books morrendo na estante, ou sentar-se no joelho do outro e com olhar microscópico “ver / os exactos mistérios” do seu sexo (close reading). Gosto aliás muito particularmente da variação a que o tacto vai sendo submetido ao longo dos versos, entre o intacto e o contacto (“The spider’s touch, how exquisitely fine!”, diria Pope), mas gosto sobretudo da expressão “exactos mistérios” que quase encerra o texto, na sua tão contraditória limpidez a preservar a indecisão essencial sobre o sentido da palavra final: membro, ou género?
Quer dizer, o poema que começa com o ser acaba com o sexo, o que talvez o afaste em definitivo de qualquer leitura infantil. Mesmo que se dê o caso de este ser um discurso de sedução num poema de amor de um aranhiço pelo homem-aranha, o das “ventosas e outros artifícios”, o que reverteria a consagrada narrativa do super-herói numa aracnofilia de dois sentidos. Será talvez, em última instância, a única leitura que pode explicar o que faz o almoço no meio do poema, e sobretudo essa entrada fria a rimar em ausência com a mais célebre das dobradas.
Joana Matos Frias
Joana Matos Frias é Professora de várias coisas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Para manter a forma, lê livros, vê filmes e ouve música todos os dias. Gosta muito de poemas de amor e não gosta especialmente de insectos, mas não sofre de aracnofobia.